1. cristofer

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   A cortina rosa mexia-se com suavidade, acompanhando a brisa que atravessava a vidraça aberta. O tecido que dançava pela sala começou a transfigurar-se do tom pálido para cinza, a cor estava demorando a voltar ao normal, não dava sinais de ser uma nuvem passageira que cobriu o sol. Ou estava anoitecendo, ou uma tempestade que se aproximava, pensou Cristofer, ao observar o espetáculo da poltrona de um lugar. Ele não tinha ideia de há quanto tempo estava ali parado, e sequer tinha um relógio por perto. A dúvida poderia ter sido sanada indo até a janela e olhando o céu lá fora, isso se o homem não tivesse adormecido enquanto refletia sobre o enigma de o que estaria acontecendo do outro lado da muralha de algodão trançado e renda.

   Quando acordou já passava das três da madrugada. O Caliel não tinha ligado, às vezes era bom não ser incomodado, em outras sentia falta do telefone tocando todas às sextas-feiras, entre oito e dez da noite.

   Com muita dificuldade conseguiu sair do sofá. Ele precisava de um banho, cigarros, aspirinas e nunca mais beber na vida.

   No banheiro escolheu a toalha que estava menos úmida e a colocou em cima da tampa da privada, dobrada com descuido. Tirou a roupa, amarrou o cabelo e entrou no box de pés descalços; o primeiro jato de água veio gelado e causou um choque térmico que tirou o Cristofer do transe, aos poucos a temperatura do chuveiro foi subindo até o ponto certo, fazendo-o relaxar.

   Ele era assistente num estúdio fotográfico, o primeiro emprego bom em três anos. Se tivesse força de espírito, teria se tornado traficante ou ladrão, era o que a família e a escola esperavam dele: se deu bem como marginal amador, certamente a vida o profissionalizaria. Mas não aconteceu, pulou de subemprego em subemprego nos nove anos que se seguiram após rasgar o diploma de conclusão do ensino médio em frente ao paraninfo na festa de formatura.

   4:48 am. Era melhor esperar amanhecer e ir para o serviço.

   Antes de sair de casa, deixava metade do café da manhã em cima da mesa, e acabava de comer à noite, foi a forma que encontrou de fingir que o dia não tinha acontecido. Seus relacionamentos eram tão patéticos quando esse hábito. "Quarenta anos passam rápido", tentava se convencer.

***

– Bom dia, doçura – cantarolou Artur, ao vê-lo entrar.

– Bom dia – respondeu Cristofer, sem qualquer animação e largando os jornais que comprou em cima da mesa de centro.

– As modelos chegam depois do almoço. Preciso que você ligue para a loja de roupas, a maquiadora e o buffet, faça tudo estar aqui na hora certa.

– Vou tentar.

– Querido, todos por aqui estão apaixonados por você. Use esse seu charme para alguma coisa. Tem certeza que não quer mesmo ser um dos modelos do catalogo de hoje? O dinheiro é bom. Ah, tudo bem, não vou insistir mais. Só não olhe dessa forma para nossos clientes, precisamos desse serviço, entendeu?

   Ele não respondeu. Pegou a agenda e o telefone móvel, e foi se sentar no banco de madeira que ficava na calçada, em frente ao estúdio, para fazer as ligações. A agenda era uma bagunça, um caderno velho cheio de anotações e de cartões grampeados, soltos, colados e rabiscados.

   Artur era um ótimo fotografo, conseguia trabalhos muito bons, mesmo se escondendo naquele fim de mundo. Ele teria sido grande, um dos maiores, isso se não cheirasse cada centavo que entra além do necessário para pagar as contas. O espaço inteiro era uma bagunça e, tanto Artur quando Cristofer, agiam como se estivessem em um filme de velho oeste: "me dê o dinheiro e terá sua encomenda".

   Os dois trabalhavam bem juntos. Artur viu Cristofer num bar, foi amor à primeira vista. Queria aquele homem bebendo sozinho como amante ou como modelo, não conseguiu nenhum dos dois, mas desde então achou o melhor assistente que já teve.

   A primeira ligação que o rapaz resolveu fazer seria para ver se o lanche das modelos chegaria na hora. Começou, então, a jornada de busca pelo número na agenda: B de buffet, não; C de comida, não; P de petiscos, não. Enquanto quebrava a cabeça tentando descobrir onde estaria o telefone, ele viu a si mesmo passando do outro lado da rua. Ergueu-se num sobressalto e nem percebeu que tinha gritado:

– Caliel!

(ant)erosOnde histórias criam vida. Descubra agora