2. gueixa

43 8 0
                                    





Caliel atravessou a rua e foi ao encontro da voz que chamou seu nome na outra calçada.

– Cris, olá! Quanto tempo?

– É, já faz bastante tempo – concordou – O que tem feito?

– Dando duro, como sempre. Mais ainda agora que minha filha nasceu e...

– Você teu uma filha? – interrompeu Cristofer.

– É, tenho. Ela está com dois anos. Até te levaria lá em casa, mas você entende, não é? Ainda não falei de você para minha mulher e seria uma situação estranha.

– É claro.

– Mas foi bom te ver. Fico mais tranquilo de saber que está bem. Precisa de alguma coisa, dinheiro?

Cristofer ergueu a agenda e o telefone sem fio como resposta.

Caliel deu um tapinha no ombro dele como parabenização, antes de dizer:

– Bem, preciso ir agora, a gente se cruza por aí. Até outro dia.

E ele saiu caminhando apressado, sem nem ao menos dar tempo do Cristofer pensar em uma frase de despedida.

Ele se sentou novamente no banco, não conseguiu lembrar o que precisava fazer. Arthur não se incomodaria que ele fosse até o final da rua, naquele boteco 24 horas, beber alguma coisa antes de voltar para as tarefas. Merda! Estava sem dinheiro até pra isso.


Às quatorze horas e trinta minutos tudo estava organizado para a sessão; a maquiadora e cabeleireira, Andressa, ornamentava os cinco modelos, três mulheres e dois homens, para o catalogo de primavera de uma rede de lojas. Ela corria de um lado para o outro tentando finalizar um penteado e dando retoques no pó compacto de quem estivesse sendo fotografada.

A função do Cristofer era arrumar lâmpadas, segurar rebatedores e cuidar dos acessórios, nada de muito complexo. Enquanto isso, uma das meninas não tirava os olhos do dele, mas o rapaz estava distraído demais para se importar. Até, num dos intervalos, ela se aproximar enquanto ele passava as fotos já tiradas para o computador e bebia um copo de vinho que conseguiu na mesa do lanche. A mulher, muito atraente e usando um quimono preto, aberto, deixando à mostra a lingerie vermelha que fazia parte da sessão de peças intimas, se aproximou dele.

– Muito ocupado? – perguntou se debruçando na mesa.

– Sim – respondeu ele, sem tirar os olhos dos monitores.

– Ou você é muito experiente, ou é religioso, ou é gay – disse ela, quando percebeu que não seria correspondida.

– Tem razão, estou me guardando para o dia do casamento.

A gargalhada da Andressa e do Arthur foi tão alta que a modelo, ofendida, se recusou a continuar trabalhando com eles e foi embora.

Fora esse contratempo, o resto do dia correu dentro do esperado.

Ao anoitecer todos já tinham ido embora, apenas a maquiadora e o assistente tiveram que ficar para organizar seus materiais antes de fecharem o estúdio.

– Seu trabalho estava muito bom – comentou Cristofer – onde aprendeu a fazer essas maquiagens orientais?

– Obrigada. Aprendi a fazer há anos, na primeira das centenas de vezes que algum diretor de arte achou que era genial usar o Japão como referencia para primavera. É o clichê do clichê.

– É mesmo? Não sabia.

– É sim, engraçado o único asiático aqui não saber disso. Está trabalhando com o Arthur há quanto tempo?

– Dois meses.

– Ah, por isso. O Arthur é legal, você vai se dar bem por aqui. – Ela parou em frente ao rapaz – Posso maquiar você?

– Pra quê? Não sou modelo e já estamos indo embora.

– Por favor, quero fazer um teste e seu rosto vai ser perfeito.

Ele suspirou e se sentou na cadeira em frente ao espelho. Não tinha nada para fazer naquela noite e a moça parecia muito animada, por que estragar isso?

Na mesa havia pancake, pó de arroz, batons e sombras rosa, preta e carmim, além de um estojo com uma dúzia de pinceis. Todos aqueles itens seriam usados no Cristofer.

– Você foi muito cruel com aquela moça - falou ela, se concentrando em sumir com as sobrancelhas para poder pintar novas por cima.

– Ela parecia ser aquelas mulheres que nunca mais desgrudam.

– Como você sabe disso?

– Instinto. Sei lá.

– Sei... Mudando de assunto, você é descendente de quê?

– Não sei direito, meu pai não nos registrou e foi embora quando ainda éramos pequenos.

– "Nós"?

– É só modo de dizer – mentiu, a contragosto.

Alguns minutos depois a produção estava terminada. Andressa o maquiou como uma gueixa clássica. O resultado tinha ficado esplêndido. A pele de porcelana passava a fragilidade de uma peça que se quebraria ao primeiro toque. Os olhos contornados traziam à tona segredos velados de outras eras. E os lábios, vermelhos como sangue, a inocência perdida. As mexas do cabelo, que deveriam ser presas em um coque, estavam soltas e em desalinho, e esse descuido contava uma história de aventura, talvez amorosa, talvez de fuga. Um retrato de séculos passados surgiu no espelho. Era qualquer pessoa que definitivamente não o Cristofer.

Ele ficou encarando a si mesmo com desconfiança; até que algumas gotas de água negra escorreram sinuosas, traçando um caminho desde o canto interno dos olhos, cruzando a bochecha, o vinco do nariz, o canto da boca até sumir sob a curva do queixo.

– Que droga! – falou Andressa – seus olhos estão irritados com o delineador. Vou buscar o demaquilante – e saiu na sala, para buscar novamente os itens que já estavam no banco de trás do carro.

Cristofer se manteve imóvel, sentindo uma dor intensa no peito. Estava tendo um ataque cardíaco ou sendo sufocado pela angustia. Seja lá quem fosse aquela pessoa que aparecia no espelho, deseja mais do que tudo, trocar de lugar com ela.

Diferente do que a maioria das pessoas pensava, eles não eram gêmeos. Cristofer é dois anos mais velho que Caliel. Quando tinham 13 e 15 anos, a mãe, impulsionada por uma nova paixão, os abandonou. Foi difícil, passaram por muita coisa naqueles tempos. De alguma forma, pensou ele, deveria estar orgulhoso do irmão caçula ter decidido apagar o passado e começado uma vida nova.

(ant)erosOnde histórias criam vida. Descubra agora