5. anteros [final]

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Cristofer ergueu seu corpo da cadeira e manteve a cabeça voltada para cima, encarando o teto até que as lágrimas parassem de fluir. Já estava recomposto quando a Andressa retornou com os lenços removedores de maquiagem.

– Não imaginei que você tivesse olhos tão sensíveis – comentou ela, enquanto rasgava o pacote contendo as folhas umedecidas – queria ter tirado uma foto para meu mostruário. Quem sabe numa próxima vez...

– É claro – disse ele, tirando a embalagem das mãos da mulher, pegando a carteira e o casaco na cadeira – Sem problemas. Fecha o estúdio pra mim, por favor?

Ele bateu a porta antes da Andressa poder perguntar onde deixar as chaves, ou ser informada sobre o pagamento pelo serviço do dia. Ela balançou a cabeça em negação à cena que presenciara, guardou o resto do equipamento antes de ter que dirigir por 1 hora fora da sua rota até a casa do Arthur. Pensou melhor e decidiu que iria para seu próprio lar, tomar um banho e assistir televisão. Eles que se virassem no dia seguinte em encontrá-la.

Cristofer andou por várias quadras, dobrava em qualquer rua, sem lógica alguma. Sequer reparou nos olhares de estranhamento que as pessoas lançavam para ele, aquele homem de longos cabelos soltos e face de uma atemporal japonesa treinada na arte de entreter. Só parou de caminhar quando chegou a um beco que levava para a entrada de uma fabrica desativada; sentou no meio fio, acendeu um cigarro, tremulo, e começou a esfregar o rosto com os quadrados brancos de papel que cheiravam a álcool e perfume.

***

Foram tempos difíceis após a mãe ir embora. Por alguns meses ainda conseguiram enganar os donos da casa com desculpas de porque eles estavam indo pagar o aluguel. Depois fugiram antes que o conselho tutelar fosse acionado.

Nenhum emprego de meio-período garantia o valor necessário para as contas. Cris precisou usar métodos ilegais de conseguir dinheiro. Passou alguns cheques falsos, vendeu produtos que não lhe pertenciam, ajudou em furtos amadores a lojas de conveniência e extorquia pessoa, este último era seu grande talento. Não precisava de muito esforço, o jeito silencioso fazia com que outros sentissem vontade de se aproximarem dele. O garoto, agora com dezessete anos, continuava calmo e taciturno, sem gostos ou prazeres, logo, também não sentia nenhum tipo de remorso.

Caliel era cego a tudo isso. Assistiu ao irmão começar a andar bem vestido e a sair por dois ou três dias seguidos. É claro que ele deveria desconfiar de algo, mas tinha convicção de que, seja lá o que o Cris fizesse, era para o bem dos dois. O menino continuava se dedicando aos estudos, e trabalhava como garçom na hora do almoço em um restaurante do bairro onde moravam na época.

Cris, ocupado sendo amante de uma mulher casada e, segundo seu cronograma de ação, estava na hora de sumir por alguns dias antes de voltar exigindo dinheiro para não revelar nada ao marido, resolveu ir para casa, depois de duas semanas. Pensou até em assistir algumas aulas na escola – que frequentava de tempos em tempos, a pedido do irmão mais novo.

Chegou pelas onze da manhã, com algumas guloseimas que comprou no mercado que ficava ali perto. Caliel estava apaixonado por uma garota da escola, e ela era o tema de longos monólogos dele, então, Cris já preparava um belo lanche para que ambos pudessem passar horas juntos sem inconvenientes.

Mas, as camas estavam com os colchões nus. Também não tinha nenhuma peça de roupa ou par de sapatos em qualquer canto. Cristofer não conseguia assimilar o que tinha acontecido ali, era óbvio demais para sua mente aceitar.

Ele foi bater na porta do senhorio.

– Oi Cristofer, tudo bem? Que bom que apareceu. – falou o homem – Seu irmão deixou uma mala aqui e disse que depois você viria buscar.

– Você sabe onde ele foi?

– Olha, ele saiu faz uns dias. Disse que você ainda ia decidir se vai ficar com o quarto ou não. Ah, e tem que acertar o mês passado.

– Não, vou embora. Pode me dar a bolsa.

– Certo. Vocês vão fazer falta por aqui.

– Ele não disse mesmo para onde estava indo?

– Desculpa, Cristofer, você conhece a política.

– É, eu sei – falou ao pegar a mala e, em troca, dar algumas notas de cinquenta antes de virar as costas e ir embora – obrigado por tudo.

Com uma busca rápida, soube que o Cali não estava mais indo para a escola, e que tinha pedido demissão no trabalho após receber o salário. Ele não queria ser encontrado.

Agora estava só, pela primeira vez deveria apenas cuidar de si mesmo. Ele só caminhou pelas ruas, jogou a bolsa numa lata de lixo e seguiu em linha reta, até desmaiar por exaustão. Ninguém apareceu para resgatá-lo.

Acordou muito tempo depois, não dá para saber quanto, mas já tinha anoitecido. Ele sentia a divisa entre o gramado e o asfalto nas suas costas. Olhando para o céu noturno sem nuvens, observou a imensidão de pontos luminosos. A respiração começou a ficar difícil, até trancar de vez, quando forçou para que o ar saísse de seus pulmões, explodiu num choro alto, ruidoso e ingênuo. O primeiro sentimento que brotou em mais de dez anos foi doloroso e cruel.

***

Cris sobreviveu, não por esforço. Deixou o tempo carrega-lo para onde quisesse, e aniquila-lo por puro capricho. E numa dessas brisas, reencontrou Caliel. Foi acidental, foi frio, foi desnecessário.

Os dois mantiveram contato por algum tempo a partir dali. Ligações na sexta à noite e encontros ocasionais. O passado não era citado, e nem os motivos que levaram o Cali a ter ido embora daquela forma. Falavam de trivialidades, sobre os grandes temas dos noticiários. Bebiam algumas latas de cerveja e, em seguida, cada um seguia seu caminho.

Caliel aparecia e ligava cada vez menos, os espaçamentos ficavam cada vez maiores.

(ant)erosOnde histórias criam vida. Descubra agora