3. madrugada, manhã, tarde, noite, madrugada

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Cris, Cali e a mãe não tinham lar. Eles alugavam uma casa sempre que a matriarca conseguia um emprego novo; iam morar com o novo namorado que ela conheceu – e por quem largou o emprego; e passavam algum tempo na residência de um familiar quando o relacionamento terminava. Então o ciclo recomeçava. Ninguém lembra os primeiros anos de vida, então os meninos não saberiam responder se tinha sido sempre assim.

A imagem mais remota que Cristofer possuía era de estar brincando num quintal. A grama estava alta, quase do seu tamanho. Na segunda recordação, ele arrastava uma cadeira até a pia para poder alcançar a torneira, encher um copo de água e limpar um machucado no Caliel; Cris não lembra o quê ou como aconteceu, nem se tinha algum adulto por perto, só tem na memória algumas fotos em sequência da poça de sangue diluído explanando-se no ladrilho branco do chão do banheiro. Os anos seguintes foram uma reprise desta última lembrança.

Ainda na pré-adolescência, Cris tinha se tornado uma exemplar dona de casa. Aprendeu a fazer de tudo um pouco – lavar, cozinhar, limpar –, todo o necessário para não precisar pedir ajuda aos estranhos que o cercavam. Os adultos sempre olhavam para ele e o irmão com pena, ressaltando a condição ruim e abusiva em que viviam. Caliel aprendeu a lidar bem com essa compaixão inerte: ganhava presentes, mimos e cuidados. Cristofer, por sua vez, tornou-se cada vez mais quieto e distante. Aos que observavam com descuido, eram duas crianças mal cuidadas: uma carente e outra apática.

O caçula tinha dificuldade com a troca constante de colégios. Então o mais velho estudava o suficiente para ensinar o mais novo, até o Cali fazer amigos e montar pequenos grupos de estudo com eles.

Cristofer era muito inteligente, talvez acima da média, mas o excesso de afazeres e os sentimentos de autocomiseração empalideceram suas qualidades intelectuais de forma prematura.

Aos dez e doze anos, respectivamente, eles começaram a ficar, fisicamente, parecidos. Cristofer, até então mais alto, foi alcançado pelo Caliel. Ambos tinham corpos magros e semblantes orientais, provável que fossem descendentes de japoneses. Não tinham certeza de serem filhos do mesmo pai – e nunca se sentiram a vontade de perguntar – mas pela semelhança entre os dois, e a diferença anatômica da família da mãe, supunham não serem meros meios-irmãos.

Foi por essa época que ocorreu a transformação mais agressiva do nosso personagem. Começou quando ele perdeu o interesse em fazer planos para o futuro. Mesmo na puberdade, não sentiu atração física por ninguém. No decorrer do processo não possuía mais comidas ou programas de televisão ou esportes favoritos. O bem estar do irmão tornou-se sua única responsabilidade; ignorando até a autoridade e a presença da mãe, dos parentes e dos "novos pais" que não paravam de brotar na porta da sala de visitas. Desde então, as roupas do Caliel passaram a serem impecáveis, assim como seus modos e notas do boletim.

Apenas um adulto, um dos novos maridos, tentou conversar com o Cris a respeito de toda a demanda que ele havia assumido. Foi num final de tarde, enquanto o garoto lavava a louça.

– Olá! – disse o homem, ao entrar em casa– Cadê sua mãe e seu irmão?

– Ela, não sei. Ele vai chegar da escola daqui a pouco.

– Por que você não joga vídeo game enquanto isso? Tenho uns jogos muito legais.

– Não dá. Preciso terminar de lavar aqui e preparar o lanche para quando o Cali chegar.

– Eu tenho um irmão mais novo também. E na sua idade, vivia batendo nele porque estava mexendo nas minhas coisas. A mãe tinha que nos separar e colocar de castigo, um em cada canto.

– Não tenho porque brigar com o Cali – Cris falava ainda concentrado em esfregar os pratos do almoço - Ele sempre me obedece.

– Isso não é normal. Irmãos não são assim, você está sendo pai. Cris, me escuta, você já perdeu sua infância, aproveita o resto da juventude. Saí, arranja uma namorada, fica bêbado, joga futebol na rua. Pode deixar que sua mãe e eu cuidamos do Caliel.

O homem nem percebeu o que aconteceu, só ouviu o barulho maciço da faca de cortar carne sendo estacada na madeira da mesa, há poucos milímetros da sua mão. E Cristofer, ao lado da arma, com o rosto sem expressão e habitual do menino.

– Não tenta se aproximar do meu irmão – foi a resposta à sugestão ouvida pacientemente.

Houve muita choradeira aquela noite, quando o novo padrasto, sem explicações, os expulsou do apartamento dele.

(ant)erosOnde histórias criam vida. Descubra agora