Capitulum 2

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Coloco alguns papéis de trabalho na minha pasta de couro e volto para o calor lá fora, tomando o caminho do metrô. O ar é pior aqui embaixo, selado a vácuo e adocicado pelo lixo. Isso se soma aos odores humanos, cada um contando uma pequena tragédia de escravidão ou desejo frustrado quando passa. 

Na viagem para o Centro eu penso na Mulher Magra, tentando recordar seus detalhes físicos, tão vividamente presentes há apenas alguns minutos. Mas seja pelos inquietantes acontecimentos do dia ou pelo fato de algum canto da minha memória recente estar com defeito, ela só me volta como uma ideia, não como uma pessoa. E a ideia é menos natural e mais assustadora, na lembrança, do que me pareceu na ocasião. Pensar nela agora é como a diferença entre ter um pesadelo e contar para alguém, na clara segurança da manhã seguinte, seu enredo tolo e errático. Na estação Grand Central, subo as escadas rolantes e os túneis que dão no saguão principal. Hora do rush. Lembra mais pânico que uma viagem com um objetivo. E ninguém tem o olhar mais perdido que os turistas,que queriam vivenciar a emoção de estar em uma Nova York afobada, mas que agora ficam apenas paralisados, agarrando suas mulheres e filhos. 

O'Brien está de pé junto ao guichê de informações, abaixo do grande relógio dourado, no centro do saguão, nosso ponto de encontro tradicional. Ela parece pálida. Talvez irritada, com toda razão, com o meu atraso.  

Ela está olhando para o outro lado quando eu me coloco ao seu lado. Um tapinha em seu ombro, e ela tem um sobressalto. 

"Não sabia que era você", ela se desculpa. "Apesar de que eu deveria saber,não? Este é o nosso lugar." 

Eu gosto disso mais, talvez, do que deveria — a ideia de "nosso lugar" —,mas descarto isso como um mero escorregão nas palavras. 

"Desculpe pelo atraso." 

"Você está perdoado." 

"Lembre-me mais uma vez", digo. "Por que este é o nosso lugar? É algo de Hitchcock? Intriga Internacional?" 

"E você é meu Cary Grant? Uma ideia auto congratulatória. Não que a aparência seja tão diferente, então não faça bico. Mas a verdade é que gosto de me encontrar aqui precisamente por tudo o que há de não civilizado. É apinhado de gente. As máscaras de cobiça e desespero. O pandemônio. Caos organizado." 

"Pandemônio", repito, distraidamente, mas muito baixo para que O'Brien escute em meio ao tumulto. 

"O que você disse?" 

"É o nome que Satã dá à Fortaleza que ele constrói para si e seus seguidores depois de ser expulso do paraíso."

"Você não é a única pessoa que leu Milton, David." 

"É claro. Você fez isso bem antes de mim." 

O'Brien dá um passo para trás e me olha com atenção. "O que há? Você parece trêmulo." 

Penso em contar a ela sobre a Mulher Magra, a estranha proposta apresentada em meu escritório. Mas há uma sensação de que isso significaria compartilhar um segredo que eu deveria guardar — mais que uma "sensação",um alerta físico, uma dor no peito e um nítido aperto na traqueia, como se dedos invisíveis tivessem atravessado minha carne para me silenciar. Eu me pego murmurando algo sobre o calor, minha necessidade de uma bebida gelada. 

"É para isso que estamos aqui, não?", diz O'Brien, tomando-me pelo braço e conduzindo-me pela multidão do térreo. Sua mão no meu cotovelo traz frescor à minha pele subitamente ardente. 

O Oyster Bar fica no subsolo. Uma caverna desprovida de janelas embaixo da estação que, por alguma razão, se presta a servir frutos do mar crus e vodca gelada. O'Brien e eu passamos nosso tempo aqui ruminando sobre o estado de nossas carreiras (a minha atingindo seu ponto culminante, a desfrutar o status de"principal especialista global" a quase qualquer citação, e os trabalhos de O'Brien sobre o apoio psicológico dos tratamentos espirituais garantindo sua recente quase fama). Na maior parte do tempo, no entanto, não falamos de nada específico,como se fôssemos feitos um para o outro, ainda que um casal improvável.  

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