Saio da estação da 86th Street, no Upper West Side. É onde nós vivemos, minha pequena família, em meio a outras pequenas famílias da vizinhança, nossa rua quase sempre cheia de pais segurando copos de expresso com leite enquanto empurram os mais modernos carrinhos de bebê. É um clichê perfeito para pessoas como nós: profissionais de elevada escolaridade que têm preconceito contra os subúrbios e a fé de que vivendo aqui, em uma relativa segurança e ao mesmo tempo a curta distância do Central Park, do Museu de História Natural e de excelentes escolas públicas, daremos a nossos filhos únicos aquilo de que eles precisam para um dia se transformarem em nós.
Gosto daqui, de uma maneira meio que de turista permanente. Cresci em Toronto, uma cidade de escala e temperamento mais modestos, relativamente sem mitologias próprias. Morar em Nova York tem sido, para mim, um processo de aperfeiçoar o fingimento. O fingimento é meu lar, não uma invencionice de romances, de filmes. Fingir que um dia quitaremos a hipoteca de nosso espaçoso apartamento de três quartos em um "edifício de classe" na 84th Street. Fico sempre incomodado com o fato de que não temos, na verdade, condições de bancar o lugar, ainda que Diane goste de ressaltar que "ninguém banca coisas, David. Não estamos mais em 1954".
As coisas não estão bem entre nós e talvez não tenham mais conserto. Mas, enquanto sou sacudido pelo velho elevador até nosso andar, repasso os acontecimentos desse estranho dia, para decidir o que enfrentar, o que enterrar. Quero contar a Diane sobre O'Brien, minha conversa com Will Junger, a Mulher Magra, porque não há mais ninguém com quem compartilhar essas informações específicas, cada uma muito íntima, a sua maneira, para apresentar a um colega ou em um jantar com amigos. Mas também há a esperança de impressioná-la. Revelar algo que a fizesse parar, despertar seu interesse, sua simpatia. Postergar o inevitável, o que talvez seja a única coisa que eu possa fazer esses dias.
Abro a porta do apartamento e encontro Diane de pé, esperando por mim, um copo de vinho quase vazio na mão. O que seu semblante expressa? Que não importa a história que eu contar, não fará a menor diferença.
"Precisamos conversar", ela diz.
"As duas palavras mais temidas na história do casamento."
"Estou falando sério."
"Eu também."
Ela me leva para a sala de estar, onde outro copo de vinho (este cheio) me espera na mesa de centro. Algo para atenuar o impacto do golpe que ela está prestes a dar. Mas não quero atenuantes. Esse tem sido um problema dela esse tempo todo, certo? Que eu nunca esteja presente. Bem, seja pelos estranhos e terríveis acontecimentos do dia ou por uma nova resolução que acabei de tomar, eu me sinto muito presente neste momento.
"Estou indo embora", diz Diane. Seu tom de voz é o de uma hábil provocação, como se este fosse um momento de coragem para ela, de uma fuga audaciosa.
"Para onde você irá?"
"Para a casa dos meus pais em Cape durante o verão. Ou parte do verão. Até que eu consiga meu próprio apartamento."
"Dois apartamentos em Manhattan. Como vamos pagar por isso? Você ganhou na loteria?"
"Estou sugerindo que não há mais 'nós', David. O que significa que estou falando de apenas um apartamento. O meu."
"Então não devo confundir com uma separação moderninha."
"Não, acho que não."
Ela toma o último gole de seu copo. Foi mais fácil do que ela imaginava. Ela está quase acabando, e a noção do fim a deixa com sede.
"Estou tentando, Diane."
"Eu sei que está."
"Então você pode ver que eu estou tentando?"
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O Demonologista
HorrorO Demonologista - "A maior astúcia do Diabo é nos convencer de que ele não existe", escreveu o poeta francês Charles Baudelaire. Já a grande astúcia de Andrew Pyper, autor de O Demonologista (DarkSide® Books, 2015), é fazer até o mais cético dos lei...