Atravessou a Avenida BH em direção ao portão de sua casa. Acabara de voltar da serra onde ficara por horas a meditar no fato de ter recebido naquele dia um cheque nominal no valor de cem mil reais. Aquela serra sempre servira de templo para suas mais profundas meditações. Era do tipo de pessoa que fazia parte dos pequenos grupos, como dizia sua mãe: "Daqueles poucos gatos pingados!".
A maioria das pessoas talvez ficasse extremamente feliz tendo a posse de uma quantia daquela magnitude, mas ele não sabia de fato o que sentir a respeito do que jazia em suas mãos. Não entendia essa neura das pessoas por dinheiro. Sabia que havia tantas outras formas de poder, tantas outras formas de dominar e ser dominado.
Seu dinheiro fora resultado de anos de uma disputa judicial entre David e a companhia elétrica CELPA, na qual ele pode provar o gosto amargo de se buscar justiça no Brasil, particularmente num lugar tão distante como o da sua cidadezinha. Foram anos a fio de disputa que faz com que qualquer injusto tenha sempre uma galáxia de passos a frente e faz com que os justos tenham cada dia mais seu número reduzido à ínfima quantidade, principalmente se levar em conta o conceito econômico do custo-benefício e a lógica de que sempre é bom quando se tirar proveito de algo.
Sua maior ideia quando decidiu entrar com a ação era de fazer a empresa de eletricidade estadual sentir no bolso a dor que ele sentiu quando teve seu nome exposto no SPC, somados ao valor abusivo na conta de luz e aos meses de ligações e caminhadas para a central de atendimento da empresa em sua cidade.
Ele sabia, ainda que não seguisse tal logica, que no mundo das relações comerciais apenas as percas monetárias são levadas a sério e causam sofrimento.
Era um descaso desumano e ilegal passar pelo que os clientes dos serviços de fornecimento de energia elétrica passavam, embora nenhuma autoridade constituída fizesse algo para penalizar tal empresa, inibindo assim tais abusos.
Os atendentes de caras fechadas, talvez por receberem salários miseráveis, chamavam, "- Próximo!", e a pessoa se dirigia, puxava a cadeira e se sentava. O atendente nada de tirar o olho da tela do computador, nada de dizer bom dia, nenhuma cortesia que fosse partia dele.
As pessoas, já estressadas com a conta de luz abusiva, acabavam, devido a tal tratamento, disparando suas palavras como balas atiradas por uma metralhadora. E o atendente como se surdo fosse perguntava, após essa saraivada de palavras, o que elas queriam. Esse comportamento deixava os clientes se sentindo ainda mais desrespeitados, então falavam tudo novamente para no final ouvirem dos atendentes que a cobrança era legitima e que obrigatoriamente teriam que pagar. A vontade era de matar, mas daí vinha a lembrança de que não devemos matar.
Essa realidade era a base para a outra ideia de David que consistia em vingar-se pelas inúmeras outras pessoas que vira em suas várias caminhadas para o posto das Centrais Eletricidades do Estado.
Para seus conhecidos ele devia entrar, pois tiraria uma boa grana, "Dinheiro sempre é muito bom!", afirmavam.
Na verdade ele não sabia por que as pessoas davam a vida ou tiravam-na simplesmente em razão da grana. "Um punhado de papel não deveria valer mais que a inexplicável e surpreendente vida!", era sua certeza existencial.
David valorizava sobremaneira a vida, entre outras tantas dimensões da realidade. O dinheiro poderia ate está em uma dessas dimensões, mas para ele ficava numa posição tão distante que ele nem tinha ainda parado para tentar descreve-la. Encontrava-se perdido em suas ideias e ao passar o portão ainda tinha em sua memoria o cheque em suas mãos, ele sobre a serra e a cidade sob seus pés.
No dia seguinte ele acordou mais cedo do que o normal, na verdade nem chegara a dormir, no máximo tivera breves cochilos. Não via a hora de ir ao banco. Sua meta era simplesmente reafirmar sua posição em relação a suas ideias fosse sobre o dinheiro, fosse sobre seus valores morais. Destarte ele tinha que se posicionar e tomar uma decisão sabia do ponto de vista que ele escolhera para seu norte de vida.
Na fila do banco estava calmo e nem percebeu que ficara cerca de duas horas esperando atendimento. Não viu a briga entre dois tontos a sua frente que disputavam de quem seria o lugar na fila, o que eu acho de péssimo gosto, pois se for para brigar que briguemos contra a rede bancaria por querer tão somente o lucro fácil e não dar condições de atendimento digno, e não com o semelhante a nos em posição de explorado. "- Bom dia senhor!".
O homem do caixa nem se deu o trabalho de ao menos levantar as vistas. Ele entregou o cheque, "- quero depositar todo esse valor para o Médicos sem Fronteiras!".
O senhor do caixa pegou o cheque e arregalou os olhos num susto espetacular, "- O senhor está certo do que vai fazer! É uma...", mas não conseguiu terminar a frase devido a um acesso de tosse.
Na cabeça do bancário gritava a ideia: "- Essa pessoa não deve bater bem da bola!. Hesitou por varias vezes em fazer o registro do depósito argumentando a asneira que aquilo significava. O dinheiro fizera do homem no caixa um ser verdadeiramente preocupado com o destino do senhor a sua frente. Parecia que o fato dele convencer ele seria como se o premio tivesse sendo de alguma forma compartilhado consigo. Resoluto David manteve sua decisão de doar toda a grana.
Ele saiu dali feliz por causa de suas vitórias.
A vitória tão almejada de ver aquela empresa de eletricidade punida.
E, a mais importante de todas as vitorias para ele, A DE VER AQUELE PENSAMENTO COMUM DE QUE A GRANA É TUDO CAIR POR TERRA ao menos para si.
"- Sou assim desse tipo: 'um daqueles poucosgatos pingados do dito de minha mãe'!"Ozm4d?m>%
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CRÔNICAS EM BRANCO
RandomTextos de temáticas diversas sobre o prisma crítico e analítico das ideias e comportamentos cotidiano dos homens e mulheres de meu dia a dia.