A Última Valsa

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Outra vez aquele rosto. Outra vez aquele sonho. Claudia sentou na cama, ofegante, os olhos arregalados, as mãos juntas ao peito como se para refrear o coração disparado. Olhou ao redor na penumbra do amanhecer. Continuava segura em seu quarto, como sempre. Os lençóis amarrotados e banhados de suor destacando-se do cenário tranquilo de móveis claros de madeira e cortinas quietas, deixando vazar a pouca luz alaranjada da aurora.

Suspirando e ajeitando as mechas de cabelo grudadas na testa, Claudia deixa o leito. Não conseguiria mais dormir. Algo de errado no sonho daquela noite. Era a mesma visão e, ao mesmo tempo, não era. Algo de estranho. O salão de baile iluminado por candelabros de mil velas, vestidos rodados e homens de cartola. Os músicos em seus fraques, arcos subindo e descendo nas cordas dos violinos. O perfume de jasmim misturado à fumaça dos charutos. Taças de ponche e garçons desfilando bandejas de prata. Tudo como sempre fora e de repente, lá estava ele.

Claudia lavou o rosto com água fria e olhou-se, ainda molhada, no espelho. Pairava na mente a lembrança daquele rosto pálido, uma silhueta de barba desenhando o queixo, a pele marmórea, os cabelos de um negro azulado penteados para trás das orelhas e olhos escuros e frios, exatamente iguais aos seus. Era quase seu próprio rosto que via nele. Olhando-se agora, destacava ainda mais as semelhanças. Era tão branca que as minúsculas veias do pescoço tornavam-se desenhos azulados, os cabelos longos e lisos reluziam de tão negros e os olhos... Eram dele aqueles olhos que ela admirava no espelho do banheiro?

Sua psiquiatra, durante os últimos cinco anos, tentara convencê-la de que aquela era uma projeção de si mesma. Que o tal homem dos sonhos era seu ego se manifestando numa variação de sexualidade que lhe indicava unicamente uma submissão ao mundo dos homens e seu próprio medo de relacionar-se intimamente com eles. Explicações plausíveis e embasadas pelos grandes da psiquiatria. Todavia, Claudia sabia a verdade. Aquele homem de casaca preta e punhos de renda não era seu lado masculino ou uma precipitação de autoestima abalada. Ele era ela! Era uma parte dela que dormitava de dia e vinha visitá-la à noite. Quase todas as noites, durante seus últimos quinze anos.

Sempre o mesmo cenário, embora tudo se modificasse de sonho para sonho. Rostos diferentes ao redor, outras vozes, novas melodias vindas da pequena orquestra. Por vezes, Claudia chegava correndo e adentrava o salão procurando-o. Outras noites, já estava lá e conversava coisas sem importância, esperando atenta pela chegada de seu par. E, de repente, ele surgia. Atravessava o salão em sua direção ou materializava-se como que por encanto ao seu lado. Aquele rosto sério e sereno, olhos transbordando de encanto. Ele lhe estendia a mão, a orquestra tocava a valsa – aquela valsa – e ela sorria. Mas, antes que os dedos se tocassem, Claudia acordava. Sempre. Jamais dançara com ele, jamais sentira o toque de sua pele, jamais ouvira sua voz. E ainda olhando o próprio rosto no espelho, Claudia sentiu a pele arrepiar. Sim, era essa a causa de tanta estranheza. A diferença tão marcante do sonho daquela noite. Ele chegara, estendera a mão e falara com ela. Sim, ele falara! E ela acordara assustada com o timbre daquela voz gravado em sua alma. Você dançará comigo esta noite, ele dissera num sussurro.

A moça fez um esforço para tornar a respirar, ali parada diante do espelho do banheiro. Saiu às pressas, vestiu-se rápido e ganhou a rua. Passou o dia tentando evitar a lembrança ao mesmo tempo tão assustadora e tão convidativa. Trabalhou, almoçou, tornou a trabalhar. Foi ao cinema sem saber qual filme assistira. Voltou para casa com a mesma sensação de euforia, medo e urgência. E se tivesse insônia? E se algo a despertasse antes que ele a tirasse para dançar?

Banhou-se e perfumou-se. Pôs a camisola e aconchegou-se na escuridão do quarto. O rosto afundado nos travesseiros e o coração retumbando no silêncio da noite. Uma, duas, três horas passaram. O sono não vinha e Claudia começou a sentir o pânico crescer dentro do peito. O terror da expectativa a sufocá-la. Súbito, um susto. Por baixo da porta do quarto, Claudia viu uma luz crescer e dançar, como fogo. Antes, porém, que ela tivesse tempo para qualquer reação, a música se fez ouvir.

Lentamente, o som foi ficando mais nítido. Claudia ergueu-se no leito, atônita. Sabia que não estava dormindo. Afastou os lençóis com cuidado e antes de pisar o chão, viu sobre a cadeira um vulto escuro. Um segundo de pânico e ela recuperou-se o suficiente para se aproximar. Não era uma pessoa, era um vestido.

Diante do espelho comprido, fitou a si mesma com aquele traje cor de sangue, feito de rendas tão finas que quase se desmanchavam ao toque. Nunca o tinha visto, mas sabia que o usara por todas aquelas noites, em sonho. Claudia prendeu os cabelos no alto da cabeça, calçou os saltos, respirou profundamente e saiu do quarto.

A sala do apartamento brilhava ao bruxulear de dezenas de velas enquanto a música ficava mais alta. Mas, aquele não era o seu sonho. Estava em casa. Quem estivera ali? Onde estavam os músicos? O que estava acontecendo, afinal? E, num piscar de olhos, as vozes do baile, as risadas e o tilintar das taças de ponche. O cheiro agridoce dos charutos misturados a jasmim. Tudo acontecendo outra vez, as mesmas sensações, desta vez de verdade, na sua própria sala de estar.

Claudia fechou os olhos e respirou fundo, decidindo viver aquela realidade tão fantástica, mesmo que fosse apenas um desvario. Talvez sua psiquiatra estivesse certa e ela finalmente tivesse enlouquecido. Talvez... Quando abriu os olhos, ele estava lá. O mesmo rosto, o mesmo olhar. E sorria. Aproximou-se, despiu a luva branca e estendeu-lhe a mão. Dance comigo. Pela primeira vez, as mãos se tocaram, etéreas, mas quentes. Foi quando a valsa começou. Solta e leve nos braços dele, Claudia deslizou ao som da orquestra invisível. E, como mágica, estavam outra vez no salão de baile.

Naquele momento, ela compreendeu tudo. Toda a espera, a angústia, a dança prometida e nunca partilhada. A dor. Tudo estava ali diante dela, nos braços daquele homem. Valsaram e valsaram até que a música terminou. Então, seu par a conduziu até uma sacada e, adiante, uma carruagem os esperava. Venha comigo. Ela foi. Acomodou-se no banco de couro, o rosto escondido no peito dele, braços seguros a envolvê-la. O som dos cascos dos cavalos deixando distantes os cheiros e as vozes da festa.

Ao amanhecer, a polícia já havia cercado o local. Um pequeno trecho de calçada fora isolado e uma porção de curiosos se espremia para ver o corpo da jovem suicida vestida de vermelho estirado no chão.

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