Feliz Aniversário, Greta!

34 5 2
                                    


Feliz aniversário, Greta!

As palavras ressoavam por sua memória tão alto, tão alto, que ela quase podia ouvi-las. Todos repetindo juntos. Cada primo, cada irmão, todos os tios, seu pai, sua mãe. Num uníssono ensurdecedor. Uma horda de parentes e vozes se entrelaçando, zunindo, atravessando as paredes da mente.

Feliz aniversário, Greta!

As palavras continuavam a circular por sua cabeça cada vez mais alto. Greta levou as mãos aos ouvidos num gesto instintivo, como se pudesse fazer as vozes calarem. A festa terminara, mas fora tão barulhenta. Todos os anos a mesma algazarra, a mesma ladainha. A cada aniversário mais e mais gritos. Claro, pois eles sabiam que aquele poderia ser o último. Pragmáticos, todos eles, a cada dia 20 de setembro, reuniam-se da mesma maneira, na mesma casa, com os mesmos presentes, chapeuzinhos e balões. Balões, veja só! E ela era obrigada a renunciar a um dia tranquilo para submeter-se aos abraços e beijos de todos eles. Para que tantos parentes? Será que ninguém pensava que ela poderia apenas querer passar sozinha? Não, claro que não!

Feliz aniversário, Greta!

Um segundo de descuido e lá vinham eles, todos chegando juntos, irrompendo pelo pátio da casa e pisoteando as flores. A prima trazia um xale, o primo um par de sandálias, a outra prima um ramalhete de rosas. As crianças, coitadas, enforcadas por gravatinhas borboleta e golas de renda engomada, traziam frascos de perfume e caixas de bombons. E logo a seguir, mais primos com alfinetes de pérolas, lenços perfumados e cachecóis. Sem falar de seus irmãos e irmãs, cada um com um embrulho colorido e cheio de fitas. Cartões aos montes sobre o console. Buquês de tantas flores que tudo mais parecia um enterro. E esse era exatamente o motivo. Estavam todos ali porque no ano que vem podem estar em volta do caixão em vez da mesa com o bolo.

Greta sentiu um arrepio ao pensar na imagem de seu próprio funeral. Claro que odiava aquela encenação anual, toda aquela pantomima em torno de si mesma. Podia ouvir os pensamentos de cada um de seus parentes. Todos imaginando que aquele aniversário poderia ser o último. Todos esperando, tolerantes, por sua morte.

Esse era o mal de uma família tão grande. No lugar de comemorarem os nascimentos, comemoram os velórios. Puxa, como ela gostaria de fechar a porta e deixá-los do lado de fora. Só uma vez! Eles que comemorassem sem ela. Mas não conseguia. Lembrava dos rostos sorridentes e, no mais breve momento de comoção, entravam todos. Invasores enxeridos, mas eram a família. Como ela poderia deixá-los do lado de fora? E se não voltassem mais?

Era isso. Mais do que o medo da morte, Greta tinha medo de voltar a ficar sozinha. E se numa bela manhã de um 20 de setembro qualquer, ninguém aparecesse? O que ela faria com todos aqueles doces e refrescos? Para quem partiria o bolo? Quem lhe daria lenços perfumados e sandálias? Se todos desaparecessem, a vida voltaria a ser o que era na infância. Todo aquele silêncio, a cama estreita do orfanato, as freiras deslizando pelos corredores como fantasmas sem voz.

Nada disso! Ela não tivera todo aquele trabalho por nada. Antes mesmo de completar dez anos de idade, começara a moldar os rostos. Todos os primos pequenos como ela, cada irmão e cada irmã nascendo e crescendo. Pai e mãe, padrinhos. Todos jovens e amorosos. Foi pouco depois disso que eles cantaram Parabéns a Você pela primeira vez, numa data cuidadosamente escolhida por ela mesma. E também foi ela quem decidira o que ganhar. Que culpa tinham eles se a própria Greta não lembrara de renovar os presentes a cada ano?

Quando ganhou a rua e a vida, trouxe consigo todos os parentes que cresceram com ela. Mudou-se do orfanato e afastou-se da família. Tornara-se adulta. Mas, em cada aniversário, lá estavam todos, esperando à porta. Com o passar do tempo, os gritos se tornaram tediosos e os filhos dos primos eram crianças que ela não viu nascer. Ganhavam personalidades próprias e seguiam suas vidas, onde quer que fosse. E vinham sempre para vê-la soprar as velinhas. Setenta anos passados e continuavam a vir. Agora, todavia, vinham esperando por sua morte. Ainda traziam presentes e balões, mas envelheciam com ela. Envelheciam por ela. E quem mais viria se eles não estivessem lá? Se a porta da mente se fechasse de uma vez por todas, o que seria das festas de aniversário?

Feliz aniversário, Greta!

Greta destapou os ouvidos e olhou em volta, o cômodo escuro e estreito que era o quarto do pensionato. Tudo estava quieto e a casa com quintal já não existia. Nenhum resquício dos doces ou dos papéis de presente. Não. Ela realmente não queria descobrir como seria um aniversário assim. Suportaria os gritos e festejos por mais alguns anos. Talvez chegasse a conhecer os filhos dos filhos dos primos, seus sobrinhos e sobrinhas. Era apenas um dia por ano, afinal.

Recolheu-se naquela noite como em todas, sozinha e em silêncio. Lá no fundo da mente, só o que a incomodava era saber se, no seu inevitável velório, a família realmente estaria lá, a comemorar com ela.

**************

Adquira o e-book em

· Amazon: http://goo.gl/aRBzLo

· Kobo: https://goo.gl/4Bbw2F

· Saraiva: http://goo.gl/IrZMjH

· GooglePlay: https://goo.gl/73rzGe

Jardim D'Lírios Negros (amostras)Onde histórias criam vida. Descubra agora