Asas de Borboleta

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Seria mais um dia extremamente comum, não fosse o inusitado do acaso batendo à porta com vontade redobrada. Quem diria que, uma semana antes, uma hora antes, um minuto antes, tudo corria tão bem. Mas, como gostam de lembrar os pragmáticos de plantão, basta o bater de asas de uma borboleta no Japão. O caos se anunciava pleno naquela manhã.

Um martírio a mais abrir os olhos. Os braços, que se estendiam lânguidos no espreguiçar, denunciavam a catástrofe vindoura. Tortura indizível deixar o edredom. A luz da janela machucava os olhos ainda fechados. Outro início de dia extremamente comum, não fosse o cheiro acre, ardido, que invadia o nariz sem aviso. E a claridade da janela tão forte. Forte demais.

Quando Bárbara se deu conta de abrir realmente os olhos, sentou na cama sobressaltada. O quarto inteiro recendia a fumaça. O clarão não era do amanhecer. De um salto, a moça deixou o leito e correu para a porta. Trancada, a maçaneta muito quente. Atravessou o quarto e escancarou as janelas, tossindo. E, do outro lado das persianas, o que Bárbara viu a fez recuar um passo.

A cidade inteira ardia numa labareda gigantesca. Telhados desabavam, prédios rachavam e ruíam, espalhando destroços pelas ruas de calçadas abertas em crateras imensas. Ao longe, algo explodia, fazendo subir pelo céu já enegrecido uma coluna densa de fuligem. Lá embaixo, pessoas diminutas corriam aos berros em todas as direções.

Bárbara lembrou-se de respirar quando o peito contraído já começava a doer. No mesmo instante, um acesso de tosse a sacudiu. Foi como um balde de água fria. A realidade finalmente ganhando forma. Precisava sair dali. Voltou à porta e abriu-a com certo esforço, usando uma toalha para não queimar as mãos. O resto do apartamento estava envolto em fumaça, mas não havia sinal de fogo. Ainda.

No corredor e na escada, Bárbara não achou estranho que não houvesse ninguém. Todos já deveriam ter saído do prédio. Só sobrara ela, adormecida e pronta para ser queimada viva. Viva! Ainda estava viva e inteira, correndo escada abaixo pelos dez andares até o térreo. Correndo o mais depressa que podia.

Uma parte remota de sua mente sabia que ela vestia apenas meias, calcinha e camiseta. Mas na pressa pela sobrevivência, Bárbara não se importava com isso. Tudo no que pensava era descer aquele amontoado de degraus o mais rápido que as pernas permitiam. E era até curioso, pois descia sem parar e não chegava ao final da escada. Pensava nisso quando notou um vaso de folhagem feio e robusto enfeitando o vão da escada, bem na curva entre dois andares, diante da porta corta-fogo. Desceu mais dois lances, mais três, e acabou passando por um vaso idêntico ao anterior. Dessa vez, Bárbara prestou atenção, mas não conseguiu encontrar nenhum indicativo do número do andar. Estranho. Nunca reparara nos vasos gêmeos. E já descia há tanto tempo. Deveria ter chegado a algum lugar. Nessa velocidade, logo desceria até o inferno.

Subitamente, Bárbara estancou. Uma parada tão abrupta que o peso do próprio corpo quase a jogou pelo corrimão baixo. Parou de repente, olhos esbugalhados. Estava diante de um terceiro vaso, idêntico aos anteriores. Ficou imóvel para recuperar o fôlego, mas se deu conta de que não ofegava, não tinha o pulso acelerado, nem sequer estava suando. Era irreal. Sonhara tudo aquilo?

Movimentos muito lentos, mão apoiada firmemente no corrimão, Bárbara subiu o meio lance de escadas de volta ao andar anterior. Girou a maçaneta da porta corta-fogo e parou, petrificada. Do outro lado, deu-se outra vez no seu próprio andar, diante da porta escancarada de seu próprio apartamento.

Pé ante pé, passou pela porta e através da sala, chegando ao dormitório tomado de fumaça. Por precaução, manteve os olhos presos no carpete por alguns instantes. Tentou respirar fundo antes de levantar a cabeça na direção da cama. Uma exclamação de alívio saiu da garganta contraída quando viu a cama vazia e desfeita. Não estava morta, não via seu corpo carbonizado diante dela. Mas, então...

Bárbara concentrou-se. Tinha de pôr a cabeça no lugar. Primeiro passo, foi até a cama e certificou-se de que seu corpo não estava lá. Depois, foi até a janela. O caos lá embaixo continuava. Os gritos chegavam abafados pelo som dos prédios desabando. Algo explodiu e Bárbara viu o negro rolo de fumaça subindo. O mesmo rolo de fumaça.

Atônita, Bárbara piscou algumas vezes. Não era possível. Aproximou-se do peitoril e fixou um alvo. Uma mulher de saia esvoaçante e cabeços curtos que corria do interior de um prédio até o outro lado da rua, desaparecendo sob uma marquise. Bárbara esperou por certo tempo e lá estava outra vez a mulher, aparecendo como que por encanto do interior do mesmo prédio e sumindo sob a mesma marquise, a poucos metros de distância. Então, observando o mais atentamente que podia, Bárbara percebeu que a cena toda era uma repetição. Os mesmos telhados pegando fogo, as mesmas paredes rachando, as mesmas explosões e os mesmo gritos. Tudo igual, como em um filme de um rolo só.

Deixando a janela, sentou-se na beirada da cama, os braços caídos ao longo do corpo. O choque da compreensão foi como um soco na boca do estômago. Não era uma catástrofe. Era o próprio inferno. Pessoas presas em um pesadelo sem fim, repetindo as mesmas agonias eternamente.

Nesse momento, Bárbara entendeu tudo. A própria eternidade era irreal. Não, não para sempre. As pessoas sofreriam, presas ao constante retorno, apenas até se darem conta disso. Depois, quem saberia dizer?

A boca esticou-se imperceptivelmente num sorriso vitorioso. Os olhos quiseram derramar uma ou duas lágrimas, mas ela os fechou. As mãos não se crisparam e os joelhos não fraquejaram quando ela ficou de pé, girando o corpo. Parada outra vez diante da cama desarrumada, Bárbara abriu os olhos. Contrariando todas as expectativas, a visão do corpo carbonizado e retorcido em meio aos lençóis desfeitos em cinzas não a atormentou. Nem sequer a incomodou. Seu próprio corpo.

De onde veio a luz que cegou seus olhos ela nunca descobriu. Tudo o que soube no ato foi que os incêndios se apagaram, os gritos pararam e o mundo já não era caótico. O último segundo era paz. A mesma paz lânguida e morna do edredom que a envolvia na cama, antes do bater de asas da borboleta.

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