Parte 1 - Capítulo 1

56 4 1
                                    


         Aqui está rosmaninho, para lembrança. Não te esqueças de mim, querido.
               — Ofélia, Hamlet, ato 4, cena 5

                             ***
                        Capítulo 1

                     Eu te liberto...
        Eu te liberto, Lenah Beaudonte.
                   Acredite.... e seja livre.

Estas são as últimas palavras de que consigo me lembrar. Mas elas são vagas, foram ditas por alguém cuja voz não reconheci. Pode ter sido há séculos.

Quando acordei, senti imediatamente uma superfície fria no lado esquerdo do rosto. Um arrepio gelado desceu por minha espinha. Mesmo com os olhos fechados, sabia que estava nua, de bruços, em um piso de tábuas corridas.

Arfei, embora minha garganta estivesse tão seca que saiu um som animal assustador. Respire três vezes com dificuldade e então um tum-tum, tum-tum — uma batimento cardíaco. Era meu? Podiam ser dez mil asas batendo. Tentei abrir os olhos, mas a cada piscadela surgia o brilho de uma luz ofuscante. Outra vez. E mais outra.

— Rhode! — gritei. Ele tinha que estar ali. Não haveria mundo sem Rhode.

Contorci-me no chão, cobrindo o corpo com as mãos. Saiba que não sou o tipo de pessoa que costuma se encontrar nua e sozinha, especialmente com o sol brilhando sobre o corpo. Entretanto, lá estava eu, banhada por uma luz amarela, certa de que estava a poucos minutos de uma morte dolorosa e incandescente — não havia como duvidar. Em breve surgiriam chamas de dentro da minha alma que me transformariam em pó.

Só que nada aconteceu. Nada de chamas ou morte iminente. Havia apenas o cheiro de carvalho do piso. Engoli em seco e os músculos da garganta se contraíram. Minha boca estava molhada de... saliva! Meu peito estava apoiado no chão. Fiz força com as mãos e virei o pescoço para ver a fonte do meu sofrimento. A luz do sol reluzente entrava no quarto através de uma grande janela. O céu, sem nuvens, tinha o tom azul de uma safira.

— Rhode! — Minha voz parecia rodopiar no ar, vibrando fora da minha boca. Eu estava com muita sede. — Onde está você? — gritei.

Uma porta se abriu e fechou em algum lugar perto de mim. Ouvi um passo hesitante, um arrastar de pés, e depois as botas negras com fivelas de Rhode entraram no meu campo de visão. Virei o corpo e olhei para o teto. Arfando. Meu Deus — eu estava respirando?

Rhode se aproximou de mim, mas eu vi apenas um borrão. Ele se abaixou e as feições turvas ficaram a centímetros do meu rosto. Então ali estava ele, como se houvesse saído de um nevoeiro, como se nunca tivesse me visto antes. A pele das maçãs do rosto de Rhode estava tão esticada que parecia que os ossos iriam rompê-la. O queixo geralmente imponente e empinado estava agora pontiagudo. Mas o azul dos olhos era o mesmo. Mesmo naquele momento confuso, penetravam-me até a alma.

— Que surpresa encontrar você aqui! — disse Rhode. Apesar das olheiras, havia um brilho de alegria lá no fundo. — Feliz aniversário de 16 anos — acrescentou e estendeu a mão.

Rhode pegou um copo d'água. Sentei-me, tirei o copo dele e bebi tudo em três grandes goles. A água gelada desceu pela garganta, fluiu pelo esôfago para dentro do estômago. Sangue, uma substância a que eu estava acostumada, escorria, mas o corpo de um vampiro o absorve como uma esponja absorve água. Fazia tanto tempo que eu não bebia água...

Na outra mão de Rhode havia um pedaço de pano negro. Quando tirei dele, o pano se desdobrou e revelou ser um vestido. Era de algodão leve. Apoiei no chão e me levantei. Os joelhos dobraram, mas me equilibrei abrindo os braços. Fiquei ali um instante até que estivesse firme. Quando tentei andar, uma pequena vibração me sacudiu com tanta força que meus joelhos se tocaram.

Dias InfinitosOnde histórias criam vida. Descubra agora