Crônica da Fortaleza Vermelha

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Em Greenland, quando uma pessoa sai de uma casa, de mudança, se coloca um ramo de flores brancas na soleira da porta, para não deixar que os espíritos maus se apossem da casa, é um presente para a deusa maior, A Noiva, ela quem deve cuidar da casa dali em diante, até que um novo morador venha. Na minha vez de me mudar daquelas longas paredes de granito vermelho, eu não colhi flores brancas. Deixei as portas da forma que estavam, da mesma forma que sempre foram. Espero que os espíritos se divirtam tanto quanto eu aqui.

 Me lembrei das tardes amarelas da minha infância, das longas horas sentada aos pés do velho salgueiro, imaginando como poderia correr para fora daquelas muralhas destruídas, pegar um barco no Oriente e partir para Goldsea, o país mais ao Sul. Com seus magos e suas feiticeiras, que transformavam homens em animais e recompensavam heróis com riquezas, suas feiras coloridas encantavam meus sonhos, seus monstros marinhos vinham me engolir nos pesadelos. Todas essas histórias eu escutava de um homem alto que vinha me visitar com a família. De certa forma, não poderia deixar da amá-los, vindo todo inverno e outono, para as festividades do fim de ano e para o meu aniversário. Esse homem me ensinou a matar e esfolar coelhos, me ensinou a ler e escrever em línguas antigas e me ensinou a manejar a espada. Quando fiz doze anos, ele me ensinou a matar, mas eu o matava toda vez, com minha espadinha de madeira, esperando ele tombar no chão com um suspiro teatral, com a língua de fora e os olhos virados para cima. "Tio,", dizia eu, "quando o senhor vai me levar para navegar?", então ele sentava, limpava as formigas do blusão e me colocava ao seu lado, dizendo: "Vamos antes você casar, então eu te levo para ver os magos em Goldsea, depois vamos navegando até o Norte." "Mas não há nada no Norte!" eu contradizia "É a terra dos lobos, tenho medo de ir lá.", ele sorria para mim e voltávamos a treinar.

 Eu não vivia sozinha ali. Valeria sempre cuidou de mim, me contava histórias antigas sobre os meus pais, me colocava na cama e, de manhã, me servia meu chá e meus bolinhos de cevada, ao lado da bandeja, um livro diferente a cada manhã. Era o nosso código. O que eu precisava ler até o jantar, sem atrapalhar nas cozinhas e sem brincar com os guardas nos portões. O primeiro livro que ela me trouxe foi A Linhagem de Reis Dourados, um compêndio sobre os grandes reis de Greenland. Então assim foi indo, passei por pessoas e rostos para lugares e então para plantas e animais, quais eu podia comer e quais eu não podia, aprendi a fazer fogueiras nos diários antigos de sobrevivência que Valeria me trazia sem perceber, já que ela não lia muito bem, aprendi então sobre outras culturas, sobre outros deuses e outros monstros, já que lendas como O Cavalo Alado e monstros como o Vendaval, que era um gigante com uma boca escancarada que comia pessoas, e quando estava para chegar soprava sobre a terra, formando os ventos fortes, não eram o suficiente para meus pesadelos. E eu lia em todo lugar, junto dos guardas nas muralhas, onde eu lia para eles em voz alta, sozinha no quarto ou abaixo do salgueiro, e bem baixinho nas cozinhas, onde Valéria gostava de escutar as histórias românticas.

 Hoje eu vou faço quinze anos.

Conseguia sentir a brisa cálida do vento no meu rosto. O velho salgueiro acima de mim me dava adeus. 
Levantei e limpei o vestido, espanando a terra e a grama do tecido cor de amêndoa. 
Tudo já estava pronto para a minha partida. Minha história chegava a ser cômica: A pequena nobre, órfã de pai e mãe, assim que completou seu décimo quinto inverno, cumprirá com sua sina de casar com o príncipe herdeiro de Greenland. Uma droga de príncipe. Uma droga de história. 
— Bárbara! -A voz estridente da minha governanta guinchou da cozinha, me chamando. 
— Sim? - Disse eu assim que alcancei o batente da porta da cozinha. 
— Tudo pronto? Não quero que se atrase nem chegue parecendo um pardal que caiu do ninho. 
— Não me pareço com um pardal... Muito menos um que caiu do ninho... 
— E nem quero que pareça. A carruagem vai chegar em pouco tempo. Lembre-se: faça tudo o que ele lhe pedir. Não seja orgulhosa. E, acima de tudo, SEM ARMAS! - Seu rosto se avermelhou a essa altura. 
— Tudo bem. - Disse eu, estendendo as mãos de forma tranquilizadora.- Vou indo pegar minhas malas. 
O rosto dela se descontraiu um pouco. O nome dela era Valeria. Me criou e criou praticamente esse castelo todo... Inclusive meu pai. 
Não prometi nada sobre as armas. 
Subi as escadarias de pedra da Fortaleza Escarlate com a velocidade e habilidade de quinze anos subindo e descendo esses degraus. Sabia quais eram escorregadios, quais faziam barulho, quais localizações em cada um deles para se subir silenciosamente até cada sala... Então percebi o quanto era difícil partir desse lugar. Era meu lar. 
Na verdade, não conseguiria dizer o que aconteceria com a fortaleza depois que eu partisse... Talvez acomodaria um nobre, ou uma divisão do exército... Na verdade, pensar nisso me dava muito medo. 
Cheguei ao meu quarto, todo desmontado. Um embrulho com minha espada e meu arco com o estojo da aljava se encontrava meio jogado a um canto. As paredes de pedra nunca pareceram tão frias.
Embrulhei-os mais uma vez e coloquei-os em uma mala de couro amarelado, grande o suficiente para acomodar tudo. Passei meio que rebolando pelos armários desmontados e cheguei ao fundo do quarto. Notei uma pequena escultura, feita de mármore negro como a noite. Nunca havia visto essa peça no meu quarto antes. Representava uma mulher, bela, seu vestido esvoaçando. Aos seus pés havia uma figura canina grande. Um lobo, que olhava manso para a bela senhora. A mulher estava com um braço estendido para cima, onde uma ave repousava. Seu bico não deixava dúvidas: era um corvo. 
Tantos elementos em menos de trinta centímetros. 
Aquela peça me lembrava as esculturas pagãs que jaziam nas ruínas antigas, antes dos seus povos reconhecerem os verdadeiros deuses. 
  
A carruagem chegou quase que sem ninguém perceber. Para mim, ela chegou como um estrondo. 
Assim que eu avistei a forma arredondada cor de oliva ao longe, Fechei meus olhos e silenciosamente pedi ajuda. Meu auxílio chegou na forma da carícia do vento nos meus cabelos. 
Lá em baixo a movimentação era semelhante a de formigas. Vi uma figura magra vestida de azul dando ordens aos criados. 
Desci as escadas e fui até o portão, onde minhas malas jaziam ao lado da porta de madeira. 
— Barbara. - Uma voz masculina e familiar me chamou. 
Meu tio, Derrick Kelpsea. Sua bandeira era de um azul escuro como o mar com um cavalo marinho verde claro na frente. Seu rosto macilento e pálido era contornado de pelos grisalhos. Seu sorriso fino e escuro adornou sua boca quando fui abraçá-lo. Ele morava em Leitoazul na Fortaleza das Algas com a esposa, Khaerin e os filhos Edwin, o mais velho, com 16 anos, Marissa, com 13, e Joshua, com 6.

Dinastia Dos LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora