Meu estômago fica gélido quando penso no olhar odioso daquela desconhecida a pouco. Rachel. Por que ela não gosta de mim?
Fecho os olhos na cama, esperando o sono vir e ele vem... E se vai. O Sol sequer nasceu, mas a luz da lua já não ilumina o meu lado do castelo. Meu estômago ronca alto e dói. Deveria ter terminado de jantar e não me importado com aquelas pessoas.
Saio do quarto na ponta dos pés, em um real esforço de não fazer barulho nenhum. Mas logo senti o carpete sob meus dedos e lembrei que todos os corredores do castelo são assim.
Desço um lance de escada inteiro até o terceiro andar do castelo, na ala Leste, quando vejo um feixe de luz escapando por uma porta entreaberta. Ouço um gemido alto vindo da mesma direção e congelo no lugar. Um fantasma? Logo ouço um pedido de silêncio abafado e sei que não há ninguém no corredor ou nas escadas. Dirijo-me até o quarto com passos de gato e, pela fresta, vejo costas brancas e ossudas arqueadas, seios velhos e um rosto contorcido. Sinto náusea. A rainha fazia esforço para não gemer, todo o seu corpo mexendo em um ritmo obsceno. Um tórax bronzeado perfeito se curva para abraçar a rainha, e o rosto lindo de Clyo se revela diante de mim. Era uma sala de estudos, pois estavam rodeados de prateleiras cheias de livros e uma escrivaninha antiga fazia as vezes de cama. Saio correndo pelo corredor e escada abaixo, pelas sombras, o nada no meu estômago revirando dolorosamente. Ao chegar ao Hall, viro a esquerda e sigo na penumbra até uma porta encostada. Uma fraca luz de vela saía dela. Havia alguém nas cozinhas... Espero que eles não estejam fazendo em cima do queijo.
Abro a porta, decidida que não iria dormir com fome e encontro a silhueta rechonchuda do rei Jeremy, que beliscava algo das prateleiras. Ele para de mastigar e olha para mim, os olhos apertando para me distinguir.
- Bárbara?- pergunta ele, alcançando a lamparina de vidro e ouro e lançando sua luz sobre mim.- Como chegou até aqui sem luz?
- Eu não senti necessidade... E podia chamar atenção.
- Pelos deuses, menina, está um breu no castelo!- ele riu em seco, escuto as migalhas de biscoito caindo de sua barriga para o chão. Ele faz um sinal para que eu me aproxime e me puxa uma cadeira num canto onde mais uma lamparina repousava. Ele serve leite frio, já que estamos no fim de outono, e um sexto de queijo muito gostoso, que derretia na boca, além de vários docinhos desconhecidos que comemos sem nos preocupar em identificar. Enquanto eu mastigava um pão doce meio farelento, sinto seus olhos sobre mim. Mas não de uma forma estranha. É quase como se ele quisesse me abraçar com o olhar.
- Sabe... Bárbara. Nós dois sabemos que esse lugar não é para você.- sua voz sussurrada e grave me diz.
- O que quer dizer, majestade?
- Quero dizer que eu poderia ter evitado muita coisa... Sabe,- ele alcança uma garrafa de vidro amarela e nos serve um pouco. Eu não sabia o que era, então o deixei beber primeiro. Ao primeiro gole ele lambe os lábios. Provo da bebida. Licor de laranja.- eu conheci seus pais, menina. Eram pessoas incríveis e muito dedicadas a você e aos seus deveres. Eu me sinto muito impotente desde que deixei aquilo acontecer.- ao ouvi-lo citar meus pais eu imediatamente presto mais atenção a ele. Seus olhos escuros estão úmidos. Escondendo seu rosto para mais um gole do licor, ele continua- Eu durmo com os meus inimigos, Bárbara. Não consigo confiar em mais ninguém desde muito antes de pisar nesse castelo.
- Mas o que o aflige tanto, senhor?
- O que me aflige, menina, são os meus arrependimentos. Minhas falhas e minha covardia.- ele se serve mais um pouco- Do que adianta o dinheiro, a coroa e os súditos se sequer a família não é realmente sua, o trono não é realmente seu... Os súditos não te reconhecem como rei.
Ele esfrega o rosto com sua mão desocupada, secando as lágrimas, fungando alto.
- Mas eu posso me redimir, Bárbara... Com você eu posso me perdoar do meu pior pecado.
- Que pecado, alteza?
- Do pecado de não te deixar ser quem você realmente é... De ter que esconder de você sua verdadeira identidade. De não te deixar viver sua vida.- Ele agora soluça brandamente, bebendo direto do gargalo do licor. Eu termino de beber o meu, o peito formigando levemente com a bebida. O que ele quer dizer com esconder minha identidade? Eu não estou vivendo minha própria vida? As perguntas passam como besouros barulhentos pela minha cabeça, mas parece que elas já estavam aqui, dentro de mim, faz muito tempo. Eu não me incomodo tanto com elas quanto deveria. O fato da rainha estar dormindo com o melhor amigo do meu noivo me impressiona mais do que todas as cartas que o rei acabou de jogar na minha cara. Não sei se é efeito da bebida ou de qualquer outra merda que estejam me dando pra comer nesse castelo, mas não estou surpresa. Não estou contente, é claro, eu preciso ficar. Valéria conta comigo para isso, e meu tio e toda a sua família esperam isso de mim... Certo?
Respiro fundo, a cabeça girando levemente. Um besouro bate contra meu crânio. "Tio Derrick". O rei tenta se recompor, enfiando o resto do queijo da boca. Tudo já está ficando um pouco mais azul. Está para amanhecer.
- Majestade... Preciso ver meu tio.- Rei Jeremy me olha com certa aprovação, um leve sorriso embargado se faz no seu rosto.
- Verá ele em breve, princesa.
Eu me levanto e faço uma reverência, voltando correndo para o meu quarto antes do primeiro turno de guardas do dia.Acordo com o Sol a pino, em uma posição estranha e os besouros ainda zunindo na minha cabeça. O que será que o rei deve ter feito contra mim? Foi proposital? Eu duvido. Ele pode ser todo poderoso em Greenland, mas é gentil como ninguém nesse castelo. Ao menos comigo.
Mas meus pais morreram quando eu ainda era pequena, certo? Da praga, não?
Papai se chamava Deneb e mamãe Vega, nomes estranhos, já que boa parte dos nobres de Greenland tem nomes de flores. Andorinne. Somos andorinhas, que vem e vão com o verão. Era isso que me diziam.
Enquanto eu tomava banho, meu reflexo embaçado no espelho parecia triste.
- Atravesse o Muro- algo além dele sussurrou. Esperei meus olhos caírem no reflexo, mas as duas manchas castanhas acenderam em um tom sangrento. Esse lado meu eu ainda não tinha conhecido.
- Atravesse o Muro.
Que muro? O que isso quer dizer? Mergulho a cabeça, me deixando envolver pela água morna. Pensando na madrugada passada, no flagra obsceno e na confissão do rei traído, percebo um mínimo detalhe que me faz sair da banheira e colocar as calças por baixo do vestido escuro de hoje.
A primeira neve havia caído em Greenland.
Enquanto coloco a capa por cima de mim, para esconder as flechas, o arco e o punho da espada, me olho no espelho, um nó na garganta e mais besouros que nunca na cabeça: o rei me chamou de princesa.
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Dinastia Dos Lobos
General Fiction"Minha história chegava a ser cômica: Uma pequena nobre, órfã, ao completar seu décimo quinto inverno cumprirá com sua sina de se casar com o príncipe herdeiro de Greenland. Uma droga de príncipe. Uma droga de história."