Desço as escadas com pressa, ignorando todos os olhares. Puxo minha capa mais para perto do corpo, esperando que cubra as silhuetas das armas. Enquanto abro a porta da sala de treino penso em Valéria, nela e na minha infância.
Não me lembro de ela ter dito algo sobre meus pais por muito mais que dois minutos. Sempre parecia nervosa com alguma coisa toda vez que eu perguntava sobre eles. "Você parece muito com a sua mãe", ela dizia, mas se calava logo depois. Não imagino o que meus pais quereriam para mim na minha situação. Me tornar a futura rainha de Greenland soa muito bem, mas não me vejo junto a Gabriel o resto da vida, e essa corte me enoja. Posso não ter convívio com muitas pessoas ao longo dos meus 15 anos, mas sei que nada de bom vem daqui.
Tranco a porta atrás de mim. Os archotes reluziam no piso de pedra e ar frio e novo escapava por túneis minúsculos que ligavam o local subterrâneo ao jardim interno.
As palavras do rei pareciam um tanto sem sentido agora que eu estou sóbria. Talvez ele só quisesse alguém para conversar.
Tiro a capa e sento no chão no meio da sala. À minha frente está o arco e uma aljava de flechas novas, a minha direita uma espada curta de ferro leve, um tanto velho, mas limpa. Olho fixamente para frente, em busca de iluminação. Os besouros são barulhentos. Gostaria de poder esmagá-los com meus pés. Mas o que pode ser tão grave e tão maldito que assombra a cabeça de um rei? E o que eu tenho a ver com isso? Por que ele me chamou de princesa?
Uma mão fria toca meu pescoço. Imediatamente alcanço minha espada e desfiro um golpe na direção do corpo dono da mão, girando meu braço em sentido horário. Meu corpo inteiro acompanha o movimento, a fim de me preparar para um contra ataque. Pernas longas pulam alto, de forma que eu não o atingisse. Olho para cima e vejo o vulto grande de cabelos dourados de Gabriel. Seus olhos são incandescentes como raios e miram diretamente em mim. Preciso de certo esforço mental para não atacar mais uma vez e me levanto com um pulo. Gabriel pousa pesadamente, sua meia capa curta esvoaçando atrás de si.
- Ora essa...- ele me analiza ferozmente, lambendo os beiços com um sorriso- eu não saberia esperar isso de você, Bárbara.
- O que faz aqui?- foi a primeira coisa que me veio a mente, e eu disse.
- É meu castelo. Preciso mesmo te lembrar disso?- ele ri com desdém. Gabriel se aproxima a passos largos, me devorando com o olhar. Esse garoto é perigoso.- Vejo que o rei te fez um favor ao te deixar usar esse buraco.- seus olhos correm pelas paredes e pelo teto de pedra polida.- Quando casarmos não vai precisar de nada disso.- Ele adota uma postura mais suave, mas a intenção em seus olhos é tão gritante quanto a lembrança de sua mãe com o seu amigo. Pondero seriamente em abordar esse assunto agora, mas acho melhor usá-lo depois, se tiver oportunidade. Gabriel me circunda. Me sinto um cervo indefeso nas garras de um leão. Deixo que ele se aproxime, o que ele faz rapidamente, segurando minha mão livre e tirando a espada da outra. Seus braços estão ao redor da minha cintura e ele se abaixa em direção ao meu rosto.
Não estou no clima, de verdade. Viro o rosto, mas sinto seus lábios molhados em meu pescoço. Tento me soltar, mas Gabriel segura meus pulsos com força e me puxa para perto. O volume em suas calças com certeza não é de nenhuma espada.
- Gabriel... Eu não quero...- digo. Sinto ele afrouxando meu braço, soltando-se dele e me sinto aliviada... Até que sua mão atinja meu rosto com força, em um tapa barulhento. Tudo embranquece e não escuto nada por um momento, mas percebo que vou ao chão. Maldito. Gabriel me puxa por um braço, que estala. Logo estou de pé novamente, encarando-o. Ele se mantém soturno, mesmo com a sombra selvagem em seus olhos.
- Desculpe, o que foi que disse?- ele murmura.
- Eu não quero você.- Repito. O ódio começa a queimar minha face esquerda. Vejo Gabriel fechando a mão num punho, mas estou preparada. Abaixo, deixando o soco passar por cima de mim, ao mesmo tempo tomando o impulso em um joelho, que acerta sua virilha com exatidão. Ele me larga com um bufo, envergando para frente, sem ar. Pego a espada, a capa, o arco e a aljava quando corro para a saída, sequer me preocupando em assustar os transeuntes com as armas quando subo para o térreo e para os jardins externos de Springfort.
Me encontro com o coração na garganta, escondida atrás de uma estátua nos limites do jardim. As lágrimas queimam minha bochecha ferida e eu tento não gritar de raiva. Mesmo sem muitas pessoas próximas, me levanto devagar, me esgueirando para o bosque que servia como cerca viva do castelo. Já era meio dia, mas o vento gélido que corria entre as árvores juntas me faziam sentir no crepúsculo. O farvalhar das folhas no chão encobria o barulho dos meus passos, nenhum pássaro cantava nas árvores. Minhas botas ofereciam abrigo aos meus pés, mas minhas mãos estavam formigando com o frio. Eu gostava da sensação. Me fazia sentir em casa.
Então, logo acima de mim, um corvo solitário gritou. O barulho me fez congelar no lugar. Todos os pelos do meu corpo se eriçaram e eu me senti esmagada por uma presença maior que eu. Procuro por mais alguém, preparando a espada, mas nenhum humano se faz presente. O corvo bate as asas e pousa na minha frente. Seus olhos são como prata derretida e o negror de suas asas comia toda a luz do sol ao seu redor.
Ele pula e alça vôo, um pouco acima de mim. Eu poderia alcançá-lo. Estico minha mão e ele esfrega seu bico carinhosamente em meus dedos. Suas garras me arranham levemente e ele segue vôo baixo, adentrando a floresta. Algo me diz para segui-lo.
Deixo minhas dúvidas e minhas decepções no caminho enquanto corro atrás do corvo. Por entre as árvores, o ar frio corta meu rosto, vindo da direção oposta. Logo as árvores se tornam mais esparsas, dando lugar a um muro de pedra cheio de limo. O corvo alça vôo alto, sumindo de vista.
- Devagar...- um gemido baixo disse. Eu estou ficando cansada de flagrar pessoas aleatórias transando nesse castelo.- Gabriel...- ao ouvir o seu nome meu sangue congela. Sigo abaixada nos limites da floresta em direção ao som, logo avistando Gabriel abraçando uma figura familiar contra o muro. O rosto arfante de Rachel está corado, lágrimas descem de sua face redonda perfeita. Seus olhos de avelã procuram no rosto de Gabriel algum prazer. Mas nós duas sabemos que só há ódio ali. Sua mão pressiona o pescoço imaculado da garota, fazendo-a sufocar.
- Fez o que eu mandei?- ele pergunta friamente. Rachel faz que sim com a cabeça, os olhos virando nas órbitas. Gabriel solta seu pescoço para abraçar sua cintura.- Ele precisa morrer até hoje a noite, Rachel. Quanto mais cedo eu casar com Bárbara mais cedo eu tomo conta do mundo todo.
- M-mas meu sen-nhor. Não precisa da benção dele?- Gabriel termina, abraçando a cintura de Rachel com força. Ele bufa de descaso- Ele não tem poder nenhum nesse país. Nem em lugar algum. E eu não preciso da benção de um covarde para nada.- ele larga ela e sobe as calças. Enquanto amarra o cinto, Rachel olha para ele com esperanças.
- Ele deve morrer em dez minutos, meu senhor...- Ao ouvir isso, Gabriel a perfurou com o olhar.
- Dez? DEZ? EU PRECISO SABER ONDE ELE ESCONDEU A DROGA DA COROA, SUA PUTA BURRA!- Ele cuspia em seu rosto enquanto bravejava. Se há uma coroa, então quem eles procuram deve ser... Ah não.
- Mas a coroa está com ele, meu príncipe, sempre esteve...
- Não essa coroa... Eu quero a merda da Coroa das Estrelas, Rachel. A coroa perdida dos reis assassinados. É A PORRA DA RAZÃO PELA QUAL BÁRBARA ESTÁ AQUI! A ÚNICA!- Meu coração dispara enquanto eu tento sair dali em silêncio. Como eu posso estar aqui por causa de uma coroa? Nunca na minha vida eu tive contato com nenhum tipo de gente de sangue azul ou a merda que fosse. Sou uma nobre menor, de título hereditário. Viro uma esquina de pedra, já nos jardins, e entro pelas cozinhas, subindo até o primeiro andar como louca para onde eu lembrava ser o escritório real. A porta estava fechada, mas consigo empurrar com meus ombros o suficiente para eu entrar. Na sala iluminada pelo pôr do sol, rei Jeremy jazia no chão, tossindo sangue. Uma taça com um conteúdo familiar estava na mesa, mas, além do cheiro doce do licor, havia um amargor que somente um veneno poderoso teria.
-B...ar... Bárbara...-o rei me chama. Imediatamente vou até ele, segurando suas mãos, com a cabeça apoiada no meu colo.
- Meu rei. Foi Rachel quem o envenenou... Ela...
- Não temos tempo para isso...- ele tosse mais sangue no chão- preste atenção. Vá ao seu quarto e pegue sua estátua de Mármore Estrelar. Desça pela escada de cordas que tem embaixo da sua cama. Na floresta tem uma clareira, com um cavalo te esperando.- ele tosse mais um pouco, sua respiração é profunda. Seu rosto, vermelho, se contorce em dor.- Vá direto para o Muro, ao norte... Não pare em nenhuma estalagem. Não olhe para trás.- ele tenta respirar, mas nenhum ar entra por sua garganta, que está fechando.- Vou me redimir com você, Princesa de Blackcrown. Depois do muro há uma caverna fora da segunda estrada... Entre lá e ofereça seu... Sangue... Aos deuses... De Blackcrown...- sua voz é sufocada e ele sorri para mim, os olhos em lágrimas. Suas mãos se afrouxam nas minhas e seu corpo pesa no meu colo. Agora ele se foi. Não posso ficar aqui.
Deixo o corpo para trás e subo até meu quarto. Escuto gritos desesperados por todo o palácio. A estátua de mármore negro continuava a guardar meu quarto. Ajusto minhas armas, amarrando tudo mais firmemente em mim, então amarro a escada de corda bruta que, realmente, estava de baixo da minha cama, na coluna da cama de dossel. Com uma mão pego a estátua, enquanto com a outra desço pela parede externa do quarto andar até o chão de grama.
Corro para a floresta, uma chuva fina e gelada começou a cair. Chego a uma clareira em dois minutos e vejo um cavalo preto celado, com uma mochila amarrada de cada lado do lombo. Coloco a estátua em uma delas, que continha roupas limpas de frio e monto. O Sol já está se pondo, então sigo para o norte com certeza. Há uma estradinha de terra batida feita toscamente pela floresta, então sigo por ela por certo tempo, pensando se devia mesmo fugir. A chuva já parou, me deixando molhada e com frio, as patas do cavalo chapiscavam lama para a barra do meu vestido. Me deixando tomar por milhares de besouros, porém, algo me faz parar o cavalo. O silêncio da mata clareia, escuto gritos e galopes atrás de mim. Toco o cavalo, que corre rápido, ele também havia escutado o barulho. Deveriam ser quatro ou cinco cavaleiros, e estavam se aproximando depressa. A floresta começa a rarear e vejo casas e comércios da parte norte da cidade. Assim que consigo sair da floresta, dois cavaleiros pulam em minha direção. Clyo e Gabriel. Eles estão em meu encalço, preciso pensar em algo para despistá-los. Entro em uma ruela à minha esquerda, atropelando caixas vazias, e saio em uma avenida enlameada que dava para um portão de ferro aberto. O portão era sustentado por cordas grossas no alto de uma torre. Eu estava a mais ou menos vinte metros dele quando Clyo explode um muro de feno em minha direção, com Gabriel atrás dele. Eu passo por eles galopando, segurando a rédea com a boca enquanto solto o arco e pesco duas flechas da aljava. Quando os cavalos correm, por um momento apenas, todas as suas patas ficam acima do chão. Concentro a mira em uma das cordas mais escuras, que, mesmo acima de mim mais de vinte metros de altura, parece mais escura, portanto, podre e fácil de romper. Prendo a respiração e tudo para. O cavalo decola e plana no ar, Gabriel arranha a espada em uma parede, o barulho dos grãos de pedra se chocando, um a um no ferro. Atiro, preparando mais uma flecha, atirando atrás dessa. Não tenho tempo para ver se vão me acertar por trás. Disparo com o cavalo como uma mosca, o estalo alto do portão caindo atiça o cavalo a voar pelas ruas. As barras de ferro começam a cair, e, a menos de três metros do chão, eu passo por baixo dele. Escuto Gabriel gritar e os cavalos pararem na lama. Olho para trás. O resto da cavalaria chega, todos olhando para mim. A outra corda rompeu em seguida da primeira, levando todo o portão ao chão, fazendo-o afundar no chão de lama e pedras soltas. O ódio no olhar de Gabriel me satisfaz. Acho que eu poderia ter esperado um pouco mais para tê-lo empalado com o portão.Sigo para o norte, com a primeira neve chegando a Greenland. Cavalgo a noite toda, sabendo que estou sendo caçada por todo país.
Paro perto de um vilarejo, onde encho a bexiga d'água que o rei colocou com as minhas coisas em um poço, também montando um acampamento pequeno, onde eu esquentei mais água para tomar banho. A luz que provinha da minha fogueira iluminava pouco por entre as árvores, mas, no meio da noite, alguns olhos vieram me espiar. Eram muito baixos para serem de pessoas, e altos demais para que fosse alguma coisa que quisesse me atacar. Dezenas de lobos. A fogueira estava apagada e a lua estava limpa. Saco a espada, esperando por um ataque. A cama que improvisei era cerca de meio metro acima do chão, e minhas coisas faziam as vezes de travesseiros. Mas havia algo estranho, pois o cavalo não havia se eriçado ou ficado nervoso. Tudo era silêncio quando, de repente, mil uivos preencheram a noite. Lobos grandes uivavam grosso, fêmeas e filhotes uivavam mais alto. Toda uma alcatéia me circundava, olhando para o céu, cantando para as estrelas. Então senti aquela presença massiva perto de mim novamente, me circundando, um poder destrutivo imenso. Lobos maiores que todos os outros que eu já vi se juntaram ao primeiro grupo, uivando alto, cercados de uma névoa avermelhada estranhamente quente. Aquele calor me envolvia de uma forma incomumente familiar. Me envolvia como os braços de Gabriel fizeram uma vez, esquentando meu corpo frio em um abraço de volúpia. Do meio da névoa e dos outros lobos, surgiu um lobo enorme de pelos brancos como a lua e de olhos vermelhos como o sangue, que brilhavam na penumbra, o focinho do tamanho da palma da minha mão, preto e frio, me farejou com avidez, e ele subiu na minha plataforma, fazendo a madeira estalar, deitando ao meu lado, os olhos ávidos me convidando a fazer o mesmo. A alcatéia pareceu se dispersar, mas eu sentia sua presença ao meu redor, com algumas mães dormindo próximas de mim e filhotes brincando ao redor do cavalo. Sabia que não seria atacada, que aquelas presas estariam ao meu lado, lutando por mim. Por algum motivo, sabia que aquele enorme lobo branco já havia me visto incontáveis vezes e que gostaria de provar, com tanta vontade quanto eu, o mesmo sangue.
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Dinastia Dos Lobos
Genel Kurgu"Minha história chegava a ser cômica: Uma pequena nobre, órfã, ao completar seu décimo quinto inverno cumprirá com sua sina de se casar com o príncipe herdeiro de Greenland. Uma droga de príncipe. Uma droga de história."