A Hora Selvagem

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"Essa é a hora selvagem!" pensava Cláudio sempre quando ouvia os rugidos de leões, tigres ou de qualquer outro animal que, durante a madrugada, se agitavam em suas jaulas no Parque Ecológico de Americana. Cinco anos desde que se mudou para o bairro ao lado do parque e, mesmo assim, ainda não se acostumava com esses sons.

Habituado com ruídos mais urbanos como as buzinas de carros, escapamentos de motos e sirenes ocasionais do trânsito frenético São Paulo, nunca houve uma noite que os rugidos dos animais não o despertavam. Mas essa noite, a agitação dos animais, junto com a grande neblina que deitava sobre a copa das árvores, criavam um cenário perfeito para uma história de terror, como as que Cláudio ouvia de sua mãe quando criança.

Enquanto preparava um xícara de Nescau para tentar voltar a dormir ao lado de sua esposa e esquentar seu corpo junto ao dela, Cláudio ouvindo uivos longos e petrificantes, decidiu conferir o que se passava na rua. Seguiu até a varanda assustando-se com a espessa neblina, "Amanhã vai ser o bicho de tão frio" dizia em franco diálogo consigo mesmo.

Arrastava seus pés de volta para a cozinha no exato ponto para desligar o fogão antes do leite transbordar. Fazia seu achocolatado com o máximo de precaução para não despertar sua mulher.

Seu plano correria perfeito: preparar o leite; lavar tudo; escovar os dentes e voltar para cama mas, o uivo agudo e tétrico soou mais uma vez. Agora mais próximo, como se estivesse em sua varanda.

O susto o fez derrubar sua xícara com um reverberante barulho de porcelana espatifando-se pelo chão. Entre a adrenalina do susto, a irritação e a preocupação de sua mulher acordar, Cláudio sentia uma grande corrente de vento em sua cozinha. Procurando o culpado, encontrou a porta da frente aberta, convidando a neblina a entrar em sua casa.

A condensação da neblina estava tão palpável quase que se fosse possível arrancar um pedaço, como um grande algodão doce. Cláudio fechou a porta para o indesejável convidado e se preparou para voltar para cama. "Amanhã eu limpo tudo" pensou rabugento.

Voltou silenciosamente para sua cama. Com cuidado, cobrindo-se enquanto passava um dos braços em sua esposa. "Perfeito" pensou enquanto recapitulava essa madrugada. Apesar de quebrar uma xícara, tudo acontecera como planejado.

Tentando reencontrar o sono o som de alguma coisa se movimentando em sua sala fez sua espinhar gelar. Se concentrasse sua audição, podia ouvir como se alguma coisa estivesse farejando por sua casa.

Levantou rapidamente, sempre tentando não acordar sua mulher. Caminhou através do corredor em direção a sala acendendo todas luzes no caminho. Não pensava em se tratar de um assalto, seu otimismo o impedia de pensar assim, mas talvez algum animal do zoológico tenha escapado e veio procurar abrigo contra o frio, justamente em sua propriedade. Chegando à sala surpreendeu-se com a porta para a varanda ainda aberta. "Mas eu não fechei?" questionava.

Fechou a porta à chave e girou sobre os calcanhares em direção ao quarto. Ao corredor ouviu mais uma vez o uivo lamentoso vindo diretamente de sua cozinha. Voltou com passos apressados para se deparar com a figura fantasmagórica de um grande lobo: os olhos faiscantes, as grandes presas espalhando o terror em seu corpo.

Cláudio permaneceu paralisado pelo medo, incapaz de compreender a existência de tal criatura, como se feita de fumaça, em sua cozinha. A fera se aproximava maliciosamente, mostrando seus caninos ameaçadores, os olhos terríveis acompanhando sua pulsação.

Pensou em correr e se esconder, covardemente, dentro do banheiro no fim do corredor, ou talvez dentro de seu quarto junto com sua esposa. Antes que conseguisse por seu plano em prática a criatura avançou rapidamente contra Cláudio. Assustado, correu para o quarto, alcançando a porta quando o monstro voou contra seu pescoço enterrando suas presa profundamente em sua carne.

Cláudio dava grandes gritos de dor e pavor, acordando sua esposa. Jogava-se contra as paredes em uma tentativa inútil de remover a criatura de seu ataque. Quando o monstro o soltou, arrancando uma grande parte de seu pescoço, desapareceu no ar logo em seguida.

Cláudio sentia a vida se esvaindo de seu corpo enquanto observava o olhar horrorizado de sua esposa.

* * *

A ambulância do resgate, levando o cadáver de Cláudio e sua esposa em estado de choque, virava a esquina, enquanto policiais que atenderam a ocorrência viam a grande neblina que ainda pairava sobre as árvores do Parque Ecológico.

- Madrugada complicada. - dizia enquanto abria a porta da viatura.

- Sim. De acordo com o pouco que a mulher disse, seu marido entrou gritando no quarto, com a mão agarrando seu próprio pescoço. - virava a página da folha de ocorrência - Depois começou a se jogar contra a parede para no fim, dilacerar seu pescoço causando o ferimento que provavelmente causou sua morte.

- Quando a gente pensa que já se viu de tudo. - disse após uma breve pausa.

O rugido de leões, tigres ou outra fera, vindos do Parque Ecológico chamou a atenção dos policiais.

- É como alguns dizem: essa é a hora selvagem.

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