O Que Havia No Quarto 73

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Era uma tarde normal de quinta-feira quando estávamos nos preparando para encerrar nosso expediente naquela repartição pública. Eu e mais duas funcionárias conversávamos, aguardando a saída da diretora que ainda estava na sua sala salvado arquivos e desligando o computador. Com um assunto bem corriqueiro, eu e a outras duas servidoras conversávamos sobre a crescente violência na cidade:

- Vale a pena pagar mais para morar num prédio, justamente pela presença de um porteiro e das câmeras.

- É apenas uma sensação de conforto, porque os bandidos também são atraídos pela facilidade e acumulo de bens nos condomínios.

- Isso é verdade, porém eu acho que residir em casa e bem pior.

- Eu sempre residi em casa e só entraram no meu quintal uma vez, para roubar minha bicicleta. Também vão roubar mais o quê na casa de um favelado como eu?

- Foi por isso que mandei fazer um muro bem alto, além do cachorro que avisa quando alguém está próximo. - neste instante surge a nossa chefe já tirando da bolsa a chave do seu carro, quando eu perguntei - A senhora mora em apartamento, não é Dona Josefa? Já teve problemas com a segurança?

A elegante diretora arregalou os olhos verdes esculpidos em um rosto orgulhoso, meditou por dois segundos e se posicionando à nossa frente dando início a este testemunho:

A experiência que eu tenho de apartamentos é apenas uma, já que fui morar nesse que estou assim que me casei. Até os últimos anos jamais tive do que me queixar. O prédio é da década de 1960, época em que meu computador era uma máquina de escrever que cheirava óleo Singer; porém agora eu estou querendo vender meu lar. Sabe aquele lugar onde você passou boa parte dos seus momentos felizes, vi meus filhos crescerem brincado, as visitas das pessoas que tenho afeto, cada recinto e cada parte tem uma recordação agradável. Tudo isso agora já está se apagando. Sendo substituído por uma insatisfação, além da vontade de mudar daquele prédio o quanto antes.

Vai completar um ano das minhas ultimas férias, no primeiro dia eu estava jantando com meu marido na sala de estar, a TV ligada passava o último telejornal. Sabe as habitações projetadas naquela época? Ela tem áreas bem amplas, justamente para satisfazer os anseios de conforto através do espaço. Então, eu comia de costa para a televisão e de frente para o Roberto quando ouvi os sarilhos pela primeira vez. Eram barulhos que viam do teto, como o de uma bola pesada rolando no piso de cima ou, quem sabe, uma criança correndo. Sarilhos, sim, um som igual a alguma coisa rolando bem acelerada. Depois que eu fui deitar escutei novamente os sons do apartamento de cima. Foi no silencio da noite que passei a distinguir tais barulhos, uma vez que não conseguia dormir sob aquela indecifrável intriga. O problema é que não vinham as minhas lembranças nenhum nome dos prováveis moradores lá de cima, meu tempo era muito corrido e quando chagava em casa tinha tantos afazeres que não sobrava nenhum momento para o convívio social com meus vizinhos. Com certeza teriam estes novos moradores um cachorro pequeno. Não, o som assemelhava-se ao de crianças brincado. Mas brincando madrugada adentro?

Nos meus primeiros meses de casada, quando fui morar ali no condomínio, quem residia naquele andar era Dona Margô. Sim, agora lembrei, Dona Margô do 73. Ela sempre estava nas reuniões de condomínio com sua cadeira de rodas, exigindo que colocassem uma rampa no lugar das escadarias na entrada. "O prédio foi construído em 1960, não dava para mudar mais sua arquitetura. - dizia o sindico da época". Dona Margô quase nunca saía, graças às duas escadarias que o empreendimento possuía, a primeira no hall após o elevadores e a segunda que dava para a rua. Dona Margô era uma senhora sozinha e rabugenta, com suas razões, sempre gritando nas áreas comuns, pedindo ajuda porque queria descer as escadas... Uma vez ela até caiu da cadeira de rodas e arrastou-se pelos degraus gritando palavrões aos moradores que passavam. Esta foi a última vez que ela apareceu em público. Na mesma época que fiquei grávida do meu primeiro filho, soube que Dona Margô tinha morrido dentro de seu apartamento, este que fica em cima do meu, o 73. Depois disso passei anos sem ouvir ruídos lá de cima.

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