O diário do fim do mundo

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Quando eu assistia seriados de zumbis, ou outras variações pós-apocalípticas, ficava incomodado com o fato dos personagens não saberem o que aconteceu. Eu pensava "porra, até parece que o mundo vai acabar em mortos vivos e ninguém vai entender o como isso começou". Em compensação, quando eu assistia aos filmes em que, durante o enredo, tentavam explicar o que levou ao fim, ficava comentando "até parece, o mundo tá pegando fogo e esse babaca querendo saber o que aconteceu". Contraditório, né? Enfim, quando tudo começou, ou terminou, não sei, a primeira coisa que percebi é que eu nunca iria entender como ou porque estamos passando por isso. A impressão que tenho é que, um belo dia, eu saí de minha bolha e o mundo como eu conhecia já não existia mais. A segunda coisa foi que eu não podia aceitar isso, teria de encontrar mais pessoas, teria de entender que diabo aconteceu, nem que eu morresse tentando.

Afinal, os seriados e filmes não estavam tão errados assim. Mas estavam errados em algumas coisas. Uma delas, posso dizer com certeza, é sobre a aparência e as qualidades físicas do sobrevivente. Eu não sou um policial. Não sou um jovem bonitão e prático. Não sou um atleta. O sobrevivente que gasta suas horas extras no Planeta Terra escrevendo um "diário do fim do mundo" é apenas um velho excêntrico, nada simpático, que costumava fingir ser um intelectual de esquerda. Mas temos que lidar com o que temos, não é?

Por que decidi escrever esse diário? Talvez a raça humana seja completamente exterminada. Talvez eu não viva para terminar esse relato. Mas não acredito que seja o fim da vida inteligente no planeta terra. No futuro, outras espécies racionais surgirão e terão interesse no passado do planeta. Alguém precisa fazer o registro do fim. Você pode pensar: "De tanta coisa pra escrever, porque focar justamente no sofrimento?" Essa resposta é fácil. As bibliotecas restantes, mesmo que sejam poucas, estão repletas de informações sobre como vivemos, alguém precisa fazer um relato sobre como morremos. Não sei se há alguém mais fazendo isso, resolvi enfrentar a tarefa.

Essa não é minha primeira tentativa de escrever sobre o fim do mundo. Logo que as coisas começaram a acontecer, anotei minhas experiências, mas percebi que meu relato era objetivo demais, eu estava em casa e apenas vi as coisas acontecendo. Minha descrição do fim do mundo caberia em uma única página. "No primeiro evento choveu gelo e eu fiquei com medo". Isso não basta. Foi quando cheguei à conclusão de que todos morreriam que criei coragem e parti em busca de sobreviventes. Fiz entrevistas e escrevi os relatos. Coloquei no papel na forma como a entrevista foi feita. Pergunta e resposta. Também não gostei do resultado. Decidi, então, tomar algumas liberdades com as histórias narradas, escrevi como um observador dos fatos, como se estivesse presente, assistindo ao que acontecia a essas pessoas durante o fim do mundo. Escrevo esse prefácio após ter terminado os relatos dos dois primeiros eventos. Parece que o mundo precisou acabar para que finalmente eu colocasse em prática o que passei a vida inteira dizendo que faria. Eis minha obra prima.

Salvador, Bahia, aguardando o terceiro evento do fim do mundo. 

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