Segundo Evento

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Após oito dias de tempestade e chuva de pedras o céu cansou de castigar a terra. Léo estranhou o súbito silêncio. Correu até a janela e tentou abrir, sem sucesso. A violência das pedras de gelo havia amassado o alumínio em vários pontos. Tentou novamente, utilizando a força que lhe restava. Todo o alimento de seu apartamento havia se esgotado no sexto dia. Se ainda se alimentava era graças à caridade dos vizinhos que lhe ofereciam uma coisa ou outra. A janela finalmente cedeu. Não chovia mais, nem garoava. Mas o céu continuava repleto de nuvens escuras. Léo olhou para a direção do mar, procurando sobre o oceano algum lugar em que o céu fosse visível. Não encontrou. As nuvens escuras pareciam envolver tudo. Léo se sentou no sofá, escondeu o rosto com as mãos e chorou até adormecer.

- Tem alguém em casa?

Léo levantou de um pulo. E escutou o segundo chamado vindo da entrada de serviço, na cozinha:

- Alguém?

Ele conhecia aquela voz, sua irmã estava bem, estava viva! Léo correu para a cozinha enquanto gritava:

- Tou aqui, Jú.

- Que bom que você tá bem! O papai? A mamãe?

Léo abanou a cabeça de um lado para o outro e mais uma vez chorou. O rosto de Júlia chegou a ficar vermelho. Seus olhos se encheram de lágrimas. Mas ela fez o que achou ser dever de uma irmã mais velha. Engoliu todos aqueles sentimentos ruins que esmagavam seu peito e tentou ser prática. Parecia um furacão andando pela cozinha, abrindo todas as portas e gavetas enquanto dizia:

- Você se alimentou bem? Dormiu direito? Tadinho, todo esse tempo, sozinho e no escuro!

- Eu tou bem, mana. Mas tou com fome. O pessoal do 203 me ajudou bastante. Mas o prédio tá bem vazio. Isso é muito assustador.

Léo abraçou a irmã e soltou no mesmo instante, com cara de nojo.

- Credo! Você tá molhada e fedida!

Júlia riu, fez um sinal com a mão dizendo espera aí e foi para o quarto.

Ela ainda estava com a toalha enrolada na cabeça quando começou a dizer:

- Precisamos sair. Buscar alguma coisa para comer. Mas vamos ter que ir meio andando, meio nadando. Quase tudo está alagado, você vai precisar ser muito forte, maninho, tem bastante gente morta lá fora. Se eu fosse uma boa irmã, iria pedir pra você me esperar e sairia sozinha, mas não tenho coragem de sair de novo. Não sem você.

Para Léo, com seus dez anos de idade, a irmã de dezoito já era uma pessoa adulta e, saber que uma pessoa adulta estava com medo e precisava de sua companhia era fantástico. Sentiu-se orgulhoso e estufou o peito. Talvez não tivesse feito isso se soubesse pelo o que ainda iria passar naquele dia.

Construímos, construímos, construímos. Sistemas de governo, sistemas financeiros, códigos morais, leis, filosofias de vida e religiões. Exploramos a mente humana e exploramos o espaço. Curamos doenças, criamos doenças. Temos teorias sobre tudo. E tudo em nome da estabilidade e segurança da espécie humana. Mas oito dias de chuva de pedras transformaram tudo em fiasco. E isso foi só o começo.

Quando Júlia viu a aglomeração na entrada do mercado parou de caminhar. Sua primeira impressão foi de que as pessoas estavam apenas agitadas, saqueando. Mas olhando atentamente percebeu que a situação já havia passado do simples saque ao mercado. Ainda segurando a mão de seu irmão, a moça observava a cena com atenção. O homem mais afastado era um policial militar, com sua farda marrom e apontando a arma para a aglomeração. Mas o homem não estava protegendo o povo e nem a mercadoria. Estava coordenando um saque aos saqueadores. Um jovem saiu por uma das janelas quebradas do mercado, carregava um pacote fechado de uma cesta básica, ele devia ter a mesma idade que Léo, talvez um ano mais velho. O policial militar deu um assovio e um dos homens que agredia um casal de idosos, tentando tomar-lhes o carrinho cheio de produtos, se virou para o policial. Ele fez um gesto de cabeça em direção ao jovem. Imediatamente o homem nocauteou o idoso e partiu em perseguição ao garoto.

O garoto foi mais rápido. Quando ouviu o assovio, também olhou para o policial e compreendeu o gesto imediatamente. Percebendo a fuga, o policial deu um único aviso:

- Parado aí, moleque!

O aviso foi ignorado. O policial apontou e atirou.

O garoto parou de correr. Cambaleou dois passos. Soltou o pacote no chão coberto por um palmo de água. A água ao redor de seu peito se tornou primeiro rosa, depois vermelha. Júlia quis gritar de terror, mas a voz não saiu de sua garganta. Ela puxou seu irmão para longe daquela cena, foi então que percebeu que seu irmão olhava em outra direção. Desta vez ela gritou.

O espetáculo era, ao mesmo tempo, maravilhoso e aterrador. Da direção do mar veio o primeiro estrondo. Uma pausa. O segundo estrondo. Uma pausa menor. Mais um e mais outro. Em poucos minutos os dois irmãos tiveram a sensação de estar em uma pipoqueira de gigantes, mas ao invés de pipocas, o ruído era provocado por raios. A garota aterrorizada não sabia o que fazer. A tempestade de raios parecia estar cada vez mais próxima. Puxou seu irmão pelo braço.

- Vamos entrar em algum lugar, pelo amor de Deus!

O garoto olhou para sua irmã, os olhos arregalados como dois pires. Mas quando abriu a boca, sua voz era tranquila.

- Não adianta estar em algum lugar. Precisamos estar em algum lugar seco, acho que essa água do chão vai transmitir o choque, ela deve estar bem salgada, estamos perto do mar...

- E o que faremos?

Léo olhou ao redor. Recentemente ele havia lido um livro infantil da série "Saber Horrível", o livro era "Eletricidade Chocante". Ele havia aprendido algumas coisas, depois do susto inicial, começava a se acalmar.

- Aquele carro, mana, vamos pra lá!

Os irmãos se esconderam na S-10. Viram quando o grupo do policial percebeu a tempestade que se aproximava e correu para dentro do mercado. Léo olhou de canto de olho para sua irmã, ela olhava fixamente para o céu. Ele desceu correndo do carro, em direção ao mercado.

Júlia não teve tempo para processar o que estava acontecendo. O barulho era ensurdecedor, a tempestade de raios estava muito próxima, talvez apenas um quilômetro distante, e seu irmão havia corrido para fora do carro. Foi quando o jovem chegou onde o policial militar estava que ela entendeu. A tempestade poderia demorar e eles não tinham o que comer. O garoto pegou uma caixa de papelão enorme. Equilibrou outra caixa em cima e começou a caminhar novamente para o carro. Júlia estava intrigada. Como o garoto conseguia carregar tanto peso? Foi apenas quando ela viu o conteúdo das caixas que entendeu. Salgadinhos e pacotes de bolacha.

A tempestade de raios chegou. Júlia e Léo estavam seguros dentro do carro, comendo salgadinhos e olhando para o mercado que se acendia e apagava como uma lâmpada de natal. O cheiro de eletricidade e carne queimada era insuportável.

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