Terceiro Evento

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O sol não penetrava mais pelos vitrais da Igreja deixando manchas coloridas no chão. Agora os dias eram frios e sombrios, mesmo em Salvador. A espessa camada de nuvens não dava trégua. Mas o Padre não se abalava, pois sua fé era do tamanho de um grão de mostarda. O sol não precisava ser visível para que o religioso mantivesse o hábito de se levantar com a aurora. Ele caminhou, evitando fazer barulho, tentando não acordar o seu rebanho. Ele não sabia. Mas um idoso o acompanhava com os olhos. E quando começou a orar diante do altar, o idoso teria acompanhado, se não fosse ateu.

Pe. Expedito agradecia a Deus pelo fim das tormentas. Pedia intensamente a Deus que perdoasse a alma de Inês por ter abreviado sua vida. E enquanto orava, se exaltava, seu murmurar se tornou um falar e em pouco tempo, seu falar se tornou uma pregação fervorosa. Os sobreviventes acordavam confusos. Tentando entender o que acontecia. Mas conforme voltavam à realidade, alguns se juntavam ao padre, formando uma missa improvisada. Outros saiam para a rua, para aliviar as bexigas cheias, ou para procurar sobreviventes e mantimentos.

O grupo era composto por pessoas completamente diferentes entre si, pessoas que "no mundo real" jamais teriam divido o mesmo teto. Pois agora não importava mais quem as pessoas eram antes de tudo, o que importava era sobreviver e fazer isso sozinho estava fora de cogitação.

Cada dia que passava sem nenhum incidente, a moral do grupo crescia. Acima de toda a dor da perda, havia a esperança. E o grupo era movido pela esperança. Um grupo formado por dez homens começou a remover os cadáveres das proximidades da igreja, mais para evitar o mau cheiro do que para dar as honras do enterro. Os corpos não eram enterrados, eram queimados. Mas mesmo sem cadáveres nas proximidades, o fato é que havia um mau cheiro, primeiro fraco, mas crescente. E, naquela manhã ele estava mais forte.

- Meu Deus do céu, precisamos urgentemente achar onde estão estes ovos chocos, eu vou enlouquecer. A cada dia que passa o cheiro fica mais forte.

Marina, em um gesto desesperado e sem sentido, passava, fungando, olhando embaixo de cada banco da igreja, procurando.

O Padre caminhou em sua direção, do seu jeito, sempre tranquilo. Pousou sua mão negra, grande e ossuda no ombro de Marina enquanto falava com voz calma:

- Não adianta procurar, minha querida. Este cheiro não vem daqui de dentro, vem de fora. É cheiro de enxofre. Talvez resultado da decomposição.

A mulher parou. Seus olhos se encontraram com o do Padre. Ela o abraçou. Seus ombros tremiam com os soluços do choro. As trinta e tantas pessoas que estavam na igreja, neste momento, pararam seus afazeres para assistir a cena.

O silêncio foi interrompido pelo motor de um carro.

Desde o início da chuva de pedras, ninguém mais tinha visto um carro rodando. Era impossível. A força das pedras havia, por si só, arrebentado os vidros da maioria dos carros expostos. Árvores haviam tombado nas pistas, vários acidentes haviam acontecido, as ruas haviam se tornado rios. Mas já não chovia e o nível da água havia baixado. O dono do carro, fosse quem fosse, tinha dado sorte de ainda possuir um veículo.

O religioso correu para a entrada da igreja e avistou o Fiat Uno vermelho fazendo o contorno da praça em frente à igreja. A batina impediu que ele corresse na velocidade que desejava, mas Breno, uma das crianças, foi veloz o suficiente, alcançou o carro e se fez visível. O carro parou. O vidro lateral escuro impedia que, à distância, fosse possível ver quantas pessoas estavam no veículo e como eram essas pessoas. O Pe Expedito se arrependeu. E se as pessoas dentro do veículo quisessem causar o mal? Ele tentou chamar o garoto, mas sua garganta estava seca. Ao invés disso, apenas tossiu.

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