Goust teve uma péssima noite de sono, estava desconfortável com o calor daquela manhã e, em breve, cometeria um assassinato.
O garoto não era inocente. Foram seus pecados que o conduziram até ali. Mas, se aquilo era o inferno, a mulher ao seu lado personificava o capeta. Próteses metálicas não eram abençoadas por Deus, logo, nada de bom poderia vir de pessoas que as usavam.
Roselin abria o relógio de bolso, observava-o por alguns segundos e o fechava. Os estalos das trincas começavam a irritar o menino.
— Pare com isso! Vai denunciar nossa posição.
Ela não era amigável. Um curativo cobria seu olho esquerdo e, se não bastasse, portava um rifle rwp91 com mira telescópica e calibre ponto quarenta e cinco.
— Sossegue, garoto, são dez e meia ainda. A missa está longe de acabar – disse, retornando ao relógio.
Sossegar? Claro, matar alguém na porta da igreja é muito normal. Olhe como estou relaxado. Vou tirar uma soneca, acorde-me quando precisar de mim, pensou, mas preferiu apenas bufar. Entrar em um covil de dragão vermelho seria mais confortável do que esconder atrás dessas caixas.
Ele observou a mulher tentando tirar as pernas metálicas do sol. Os cilindros de gás pressurizado deviam estar fervendo. Mesmo assim, ela aparentava tranquilidade. Goust, envergonhado, decidiu sofrer em silêncio.
Quando era menor, seu pai o trazia para a fábrica, mas nunca deixava que ele brincasse com as outras crianças. No início, Goust fugia, mas o pai, que se esforçava para que o filho nunca se divertisse, encerrou as escapadas com moedas na mão do vigia.
Quando os sinos badalaram, o menino sentiu um frio na base da nuca. O ar faltou, forçando-o a puxar pela boca, veio gosto de poeira e carvão. Naquele momento, se arrependeu dos seus erros, queria apenas ir para casa e viver em paz.
— Garoto, você nos esfumaçou?
Ele demorou a entender o que foi perguntado.
— É lógico que esfumacei, sua doente!
— Então acalme-se, já fiz isso muitas vezes, não vou errar.
Roselin pegou o rifle, ajustou a lente telescópica, soltou a trava de segurança, persignou-se e puxou uma alavanca, produzindo um estalo sutil.
— Olhe para mim. Quando ele sair você me avisa.
Eu?
O garoto espiou a igreja. A torre terminava com um sol de ouro no ápice. Se a religião tivesse começado ali, no calor de Riordam, o sol seria o símbolo do capeta.
Portas de pau-aghamore escancararam-se com o fim do culto. Elas foram uma doação de Murrough, dono da fábrica, e vieram direto da capitania de mesmo nome.
Filho de orc, toda essa religiosidade desaparece na hora de perdoar os erros dos funcionários.
Entre as pessoas que saíam, o garoto pôde avistar seus pais. Leovitt avançava segurando a mão da esposa pela ponta dos dedos. Um vestido amarelo com babados disfarçava o corpo rechonchudo da mãe. Escondeu-se. Se eles soubessem a enrascada em que se meteu, fracassar no assassinato seria o menor dos seus problemas.
Retornando à observação, percebeu quatro homens protegendo um outro. Os das laterais portavam cartolas cinzas, e um bacamarte preso ao cinto. O do centro apoiava-se em uma bengala e descia os degraus com dificuldade. De tempos em tempos parava para limpar o suor com um lenço. Parecia inofensivo.
O estômago de Goust o ferroou como se ele tivesse engolido arame farpado. Repassou em sua mente os motivos de estar envolvido naquilo. Se não desse o sinal, ninguém morreria naquele dia. Não seria melhor?
O garoto engoliu com dificuldade, voltou ao esconderijo e fez um aceno. Pronto, não havia mais volta, o ato fazia dele um assassino. Será que sua alma poderia ser perdoada? Goust baixou a cabeça, fechou os olhos e tapou os ouvidos.
Ele escutou um apito agudo, o mesmo de uma chaleira fervendo. As engrenagens da prótese mecânica erguiam a mercenária. Passaram-se alguns segundos, um silêncio curto. Era a calmaria antes da tempestade.
O estrondo veio como um trovão.
Os ouvidos do garoto foram golpeados pelo som. O cheiro ocre de pólvora invadiu suas narinas junto com a poeira das caixas. O apoio martelou os dentes do menino. Foi preciso algum tempo para que ele se recuperasse da pancada. Abriu os olhos e se deparou com uma Roselin sem cor. Parecia que ela tinha visto um fantasma.
— Errou? — perguntou o garoto, com nós no estômago.
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Mithril.
Era a prata dos anões. Poderia ser forjado para acomodar-se até por baixo de uma roupa casual. Por que raios um cartomante usaria uma proteção daquelas?
A mulher abriu o relógio e passou um tempo razoável encarando a foto no lado esquerdo.
— Vou despressurizar os cilindros para voar por cima do rio. Fique escondido aqui. Quando eles começarem a perseguição, vá até seu pai.
— Não vai funcionar. Na melhor das hipóteses você vai chegar inválida; na pior, afunda que nem chumbo.
— Se cuida, garoto.
Ela bagunçou o cabelo dele e iniciou os preparativos.
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O Bruxo da Capitania São Vicenzze
FantasyQuis custodiet ipsos custodes? Quem vigia os vigilantes? Em um mundo de espada e magia, pólvora e vapor, pessoas empunham a espada da justiça em benefício próprio. Notas da História: Agradeço a Fernando Cabral. Se não fosse por ele, a leitura deste...