— Comendo doce de novo, filho?
Eu sei que estou gordo, não precisa ficar me lembrando.
Goust encarou a torta. Era uma fada negra com cobertura de côco e recheio de morango. Maldição. Sua mãe estava certa. Ele empurrou a guloseima para o lado e ficou saboreando o garfo de cristal.
— Querido, você devia repreender seu filho. Se ele continuar engordando, nunca vai encontrar uma esposa.
— Esse menino não tem conserto, Valina, deixe-o em paz — disse Leovitt, enquanto virava uma página da gazeta.
Goust estava acostumado com palavras daquele tipo, mas nunca conseguia se proteger, sempre machucava.
— Eu estudo pesado para passar na academia, só você que não vê.
O homem abaixou o jornal, revelando ópticos de leitura e um charuto fedorento. Ele tragou e soprou a fumaça.
— Você passa horas lendo sobre coisas que não existem. Como tem coragem de chegar para mim e dizer que está estudando?
— Duvido que alguém consiga ficar o tempo todo concentrado em dracônico antigo. As pessoas precisam relaxar.
— Sua irmã conseguia.
Avine, irmã mais nova de Goust, foi aprovada na academia com nove anos. Aprendeu geometria em quatro dimensões aos cinco. Conseguia desenvolver suas próprias rotinas condicionais aos seis. Aos oito, já dominava alquimia intermediária. A menina só conversava o essencial com o irmão, ela parecia um autômato.
— Gallard, meu querido, você devia fumar, vai aumentar seu foco. Além disso, jovem que fuma é tão elegante — disse a mãe.
— O vapor move o mundo, Gallard. Falta vapor no seu peito, por isso você é preguiçoso — completou o pai.
— Eu não suporto o cheiro dessa coisa, e meu nome é Goust. Você não tem moral para me criticar, pai. Fracassou em se tornar um buscador de explosões, e trabalha em um emprego que é a escória dos magos: analista alquímico.
— Eu não fracassei. Larguei essa carreira promissora porque você nasceu.
Goust saiu da casa batendo portas.
***
O sol esmaecia naquela tarde abafada. Fuligem cobria as ruas de Riordam. Goust enfiou as mãos no bolso e sentiu algo, era reagente. Ele esqueceu de guardar quando o treinamento acabou.
Existiam três feitiços que podiam ser praticados sem registro. O garoto era terrível nos três.
O que ele tinha mais aptidão era Fos, uma prática que criava um brilho. A academia pedia algo intenso, como a chama de uma vela. A luz que Goust produzia era pálida, quase não iluminava. Mesmo assim era um sucesso e, alimentado por ele, foi o feitiço que mais praticou. Com o tempo, conseguia moldar a luz, criando objetos em várias formas e cores. O pai disse que aquilo era irrelevante e mandou que ele parasse. O garoto desobedeceu. Aquelas práticas pareciam naturais para ele. Chegou a comprar tomos avançados de Fos, mas, em uma noite tempestuosa, Leovitt rasgou os livros e os jogou na chuva, acusando-os de atrapalharem o menino.
O segundo feitiço chamava-se Monóklino. Tinha como objetivo forçar uma reação alquímica impossível. A academia cobrava que os estudantes misturassem água e óleo. Seu pai era o único mentor das redondezas. Goust precisava estudar na sombra da irmã, uma gêniazinha metida. Conclusão: as tentativas do garoto para realizar monóklino sempre resultavam em nada, não misturava.
O último feitiço chamava-se Gíri. Para executá-lo, era necessário plantar um feijão em uma xícara cheia de terra. O vegetal, sem intervenção, demorava sete dias para crescer. A academia pedia que o tempo de crescimento fosse reduzido pela metade. Goust achava que o pior que podia acontecer era não funcionar.
Estava errado.
Nas mãos do garoto, o feijão apodrecia todas as vezes. O pai fazia a prática e obtinha sucesso imediato. Os feijões, livres de magia, cresciam no tempo certo. Mas quando o garoto gastava reagente, fazia os gestos e pronunciava as palavras, o efeito era sempre o mesmo: apodrecimento em dois dias.
O pai fez o menino treinar as palavras e gestos até a exaustão. Teve um dia que o homem acordou de mau humor. Forçou o filho a praticar em quarenta grãos ao mesmo tempo. O esforço mental foi tão grande que Goust ficou catatônico por uma semana, precisando ser banhado, alimentado e auxiliado nas idas ao banheiro. Quando Leovitt viu que nenhum dos quarenta vingou, ele desistiu. Disse que não iria mais treiná-lo, deu o reagente e mandou que praticasse por sua conta. Pagaria a inscrição da academia mais uma vez. Se Goust não fosse aprovado, deveria procurar uma carreira mundana.
O garoto sentiu terra em sua sandália. Tinha devaneado demais e saído do bairro nobre. Deparou-se com uma matrona arrumando suas coisas. Havia um aroma delicioso no ar. Era pamonha, quentinha, com toques de canela e cobertura adocicada de grajuru. Naquela hora tardia, a rua estava pouco movimentada. Viu os doces quando passou pela tenda. Sua boca não tardou em salivar.
O menino consultou os bolsos do casaco e percebeu que o único objeto que trazia era o reagente. A caminhada havia se estendido, ele estava com fome. Pensou em usar seu sobrenome, mas descartou a ideia. A plebeia podia não acreditar, ou pior, podia tentar sequestrá-lo. Se aquela gorda caísse em cima dele estaria acabado.
Uma plebeia cheia de comida e um nobre faminto. A situação era tão ridícula que fez o menino sorrir. Gallard da família Klettenberg conseguiria o que desejava. Entrou em um beco, retirou o laço que protegia o reagente e derramou um pouco em sua mão.
Seu coração estava acelerado. Afirmou para si que aquilo era um exercício, algo que o prepararia melhor para a prova da academia. Ele espremeu o pó nos dedos, falou palavras decoradas e fez alguns desenhos no ar. Foi como das outras vezes, algo atingiu sua mente. Parecia ter substância, parecia ter inteligência. Pensamentos surgiam sem controle. Sangue. Ideias que ele não queria ter. Morte. Algo controlava seu cérebro, ele era apenas um expectador.
Com esforço, conseguiu dar um passo até a quina, fez os últimos gestos e a coisa saiu enfurecida da sua mente. No mesmo instante, uma luz pálida surgiu próxima à mulher da pamonha. O menino, escondido, mantinha apenas contato visual. O espetáculo iria começar.
Ela demorou a perceber, ainda estava envolvida na arrumação das mercadorias. Quando viu, demorou a entender. Aquele globo de luz não fazia sentido. Goust escutou um palavrão e a mulher começou a persignar-se. O globo tremeu no ar e a mulher gritou, o garoto segurou um risinho.
Ela começou a olhar para os lados, procurando alguém. Tentava racionalizar a aparição alienígena. Então o menino agiu. O globo rachou como um ovo. A mulher deu um pulo e colocou a mão no coração. Em seguida, o globo partiu com um estrondo, liberando uma criatura vermelha do tamanho de uma pessoa. Tinha chifres, garras e dentes ameaçadores.
Goust nunca viu uma mulher correr tanto.
Longe dali, quando o garoto abocanhou a pamonha roubada, sentiu um êxtase sublime. O doce atingia a língua e passeava pelo corpo levando uma onda de prazer. Ele relaxou e saboreou calmamente aquele prêmio, tinha uma sensação de dever cumprido, de sucesso, algo raro em sua vida.
Ele precisava de mais.
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O Bruxo da Capitania São Vicenzze
FantasyQuis custodiet ipsos custodes? Quem vigia os vigilantes? Em um mundo de espada e magia, pólvora e vapor, pessoas empunham a espada da justiça em benefício próprio. Notas da História: Agradeço a Fernando Cabral. Se não fosse por ele, a leitura deste...