O intrépido mago das sombras avança para mais uma operação.
Goust acendeu a lamparina e seguiu com passos firmes por entre becos estreitos. Naquele dia, o alvo era a Moradûm & Cia. A loja fornecia de enxadas e armaduras até mosquetes talmude 342. No tempo que estudou o lugar, descobriu que não havia vigias, mas as portas e janelas eram de aço reforçado. Uma clara desvantagem para o uso da sua arte. Ilusões bem posicionadas possibilitavam o acesso aos lugares mais difíceis, mas nada poderiam fazer contra uma porta de ferro.
Um apito de chaleira antecedeu a chegada de alguém. Goust havia escutado sobre ela: a mercenária das pernas metálicas. Todos ficavam desconfortáveis em sua presença, diziam que ela estava ali para matar alguém. Uma luz fraca iluminava apenas as pernas da mulher. A imagem misturava-se às sombras, tomando a forma de um centauro insetóide. O garoto sentiu um aperto no coração. Não havia como voltar sem parecer suspeito. Ele abaixou a boina e apertou o passo.
Aquela ruela lembrava Tarrasque, cachorro de Goust. O diabo sempre corria em lugares como aquele derrubando pedestres e coletando grosserias. Era arisco e desobediente, mas consolava o garoto nos muitos momentos de solidão. Um dia, o animal viu o menino realizar um feitiço, aquilo o fez enlouquecer. Ele avançou sobre Goust e mordeu sua perna. Nem doeu, parecia que Tarrasque queria apenas interromper a prática. Mas o pai não ouviu o motivo, sacrificou o cachorro no mesmo dia. Depois disso, o menino nunca mais quis um animal de estimação.
A mercenária passou pelo garoto, seu braço foi torcido e um pano úmido foi colocado em sua boca.
***
Goust acordou amarrado.
Sentiu cheiro de urina e erva-doce. Ao seu lado, uma garota dormia sobre um monte de feno. Era loirinha e tinha algumas manchas na pele. Debatia-se e gemia, parecia estar em um pesadelo.
— Ei. Menina.
Um ranger de engrenagens anunciou a chegada da mercenária.
— Febre dos anões. Os Vituns mataram muitos pequenos até descobrirem o verdadeiro vetor da doença: um mosquito — ela disse.
— Foi você! O que pensa que está fazendo? Você sabe com quem está falando? Sou Gallard Klettenberg, filho de Leovitt Kletenberg...
— Psiu! — A mulher apontou a garota que dormia.
— Eu poderia mandar arrancar suas mãos só por ter encostado em mim — ele sussurrou com toda agressividade que conseguiu reunir.
— Então me diga, senhorzinho, o que o filho de Leovitt Klettenberg fazia na quebrada dos ratos àquela hora da noite?
— Estava tomando um ar.
— Não sou idiota... bruxo.
Goust sentiu um gelo no peito.
— Vou à missa todos os domingos, nunca praticaria magia sem o aval da igreja.
— Não, né. Então o que é isso?
Ela mostrou um pequeno saco de pano contendo um pó esverdeado. Meu reagente, ela pegou. Bosta de grifo.
— Orégano, ingrediente muito usado na confecção de pratos refinados.
— Boa tentativa, garoto, mas conheço um reagente quando vejo um.
As palavras o acertaram como um soco no estômago. Ninguém, até aquele dia, havia descoberto seu segredo. Praticar magia sem registro era bruxaria, um pecado punido com a morte. A boca do garoto ficou seca, ele balbuciou alguma coisa, tentou mentir, mas entendeu que não adiantava.
— Sim, eu sei dos seus passeios noturnos. Devo admitir que você foi muito esperto. Qualquer evento sobrenatural seria investigado pelo procurador. Mas os nobres sabem que os plebeus são supersticiosos. Uma pessoa simples diz ter visto um fantasma, isso é comum em qualquer lugar do mundo. Quem poderia imaginar que seria a ilusão de um bruxo que não tem nem bigode.
Goust ficou em silêncio. O que ele fazia não parecia um pecado tão terrível, ele não machucava ninguém.
— No início, nada era roubado, ou, se era, passou despercebido. Mas você deve ter ganhado confiança, não é? O roubo na fábrica de charutos foi expressivo. Perguntas foram feitas, e, como diz o ditado: "A máquina sempre arrebenta na engrenagem mais fraca". Acusaram o vigia daquela noite.
— E daí? O sujeito é inocente.
— Não, garoto, você não sabe como as coisas funcionam por aqui. É verdade, o dinheiro não foi encontrado, então o xerife fechou o caso. Mas Murrough encaminhou para o procurador. Bencrof mandou seus capangas interrogarem o sujeito e em pouco tempo o vigia confessou ter jogado as moedas no rio após uma noite de bebedeira. Pronto. Mistério resolvido. Dimmy foi executado ontem pela manhã. Agora, reflita, esse comportamento faz sentido para um pai que cuida de uma criança doente?
Goust fitou a menina e contraiu os lábios.
— O que você tinha na cabeça, garoto? Achou que não teria consequências? Cresce! Não existe almoço de graça. O que eu não entendo é como um filho de um nobre abastado se digna a fazer uma coisa dessas. É por diversão?
— Não é da sua conta — ele respondeu emburrado.
Ela ergueu as sobrancelhas e deu de ombros.
— Vi nos registros que você alugou uma gaveta no prédio do barão, devo concluir que o produto do seu roubo está lá. Se o lugar for denunciado você morre, entendeu?
Ele assentiu a contragosto. Seu coração estava acelerado.
— Então farei uma pergunta que pode contribuir para sairmos desse impasse. Você sabe esfumaçar?
Quê?
Goust não podia permitir que outros magos o encontrassem, então esse foi um feitiço que ele precisou aprender. Concordou sem entender a relevância daquilo.
— Existe outro bruxo na cidade, ele usa suas habilidades para escravizar pessoas. É um cartomante, então, para que eu possa eliminá-lo, você terá que nos esfumaçar.
— Eu não tenho registro, sua psicopata, não posso usar magia.
— Sério, garoto?
— 'Tá bom, desculpa.
— Ótimo. Ele, como você, sempre carrega reagente. No fim, pedirei para alguém revistar o cadáver. Depois, cada um segue seu caminho, mas, se eu souber que o senhor continua praticando bruxaria, eu volto, e não será para uma conversa.
Goust olhou para a menina doente e concordou.
— Tenho uma dúvida. Você disse que o procurador investigaria qualquer magia ilegal. Não seria mais fácil denunciar o bruxo?
Ela olhou nos olhos do garoto e sorriu com cinismo.
— Não pode ser. Sério?
Ela sorriu ainda mais.
— Fodeu então.
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O Bruxo da Capitania São Vicenzze
FantasyQuis custodiet ipsos custodes? Quem vigia os vigilantes? Em um mundo de espada e magia, pólvora e vapor, pessoas empunham a espada da justiça em benefício próprio. Notas da História: Agradeço a Fernando Cabral. Se não fosse por ele, a leitura deste...