o nascimento do mundo

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Nada ainda existe no mundo a não ser Nun, o
grande oceano primitivo que um dia será chamado
pelos sábios de “sagrado Nilo”. Ao seu redor, reinam
o silêncio, as trevas e o caos infindo, não havendo
ainda olho humano que possa perceber a ausência das
formas, dos volumes e das cores. Não há nem mesmo
morte nesse opaco universo, já que vida alguma existe
ali. O informe deus Nun permanece imerso desde
sempre em seu sono primitivo, não passando ele – e
o próprio universo, já que Nun e ele se confundem –
de um grande espelho liquefeito de águas imparciais,
escuras e silentes, a refletirem o nada inexpressivo que
habita o mundo.
E então, inesperadamente, o grande mistério
acontece: Nun começa subitamente a mover-se,
despertando, enfim, de seu longo sono primordial.
Negras tempestades agitam o espelho opaco das águas
revoltas enquanto grandes massas escuras de água são
lançadas para o alto, fazendo explodir em todas as di-
reções imensos e trepidantes jorros de espuma negra.
Aos poucos a força vital de Nun começa a operar,
e das profundezas do mar revolto surge lentamente
uma pequena ilha envolta pelo impenetrável manto
da escuridão. Um primeiro progresso se fez perceber,
pois onde antes havia somente uma, agora há duas
trevas: a treva imóvel da terra e a treva ondulante do
mar. Brotada no centro dessa pequena ilha ergue-se,
aos poucos, uma pequena flor de lótus, alva e delica-
da e que se destaca no meio da treva circundante. O
universo conhece seu primeiro momento de espantosa
beleza ao contemplar aquela pequena flor, frágil e
solitária, a desafiar a escuridão silente do Nada. En-
tão, do centro da flor começam a emanar lentamente
finíssimos raios de uma fulva claridade. As pétalas do
lótus vão abrindo-se e da luz que dele emana forma-
-se, finalmente, a figura soberana de uma nova e
luzente divindade. Alguns a chamarão de Rá, outros,
de Amon e, ainda outros, de Amon-Rá – aquele ser
divino que um dia as gerações futuras louvarão como
o abençoado deus solar.
A nova divindade emerge de seu delicado leito
estendendo seus raios flamejantes pela terra inteira –
ainda vasta paisagem árida e infinitamente desolada –,
riscando o horizonte negro com seus retilíneos feixes
dourados, até que tudo se torna claro o bastante para
que se possa separar a luz da treva. Recém-despertos
para a vida, os olhos de Rá nublam-se de luminosas
lágrimas ao enxergar o pouco que ainda há no mundo
e o muito que lhe falta. Uma gota cristalina desliza e
cai de seus olhos brilhantes, indo entranhar-se na terra
dura e seca que o calor de seu próprio corpo gretara.
Dessa gota divina, um dia, surgirá a humanidade.
Depois, os olhos do poderoso Rá fecham-se e
seu pensamento se dedica a criar outras divindades
que lhe façam companhia. Uma a uma elas vão sur-
gindo, nomeadas pelo deus solar: primeiro Tefnet, a
deusa da água, e Chu, o deus do ar, que habitarão no
firmamento, glorificando o deus supremo. Então, da 11
união desses dois deuses nascem Geb, deus da terra,
e a bela Nut, deusa do firmamento. Os últimos, por
sua vez, dão origem à primeira geração de deuses a
habitar a sagrada terra do Egito: as deusas Ísis e Néftis
e os deuses Seth e Osíris.
Primogênito entre todos, o puro Osíris virá
ao mundo para cumprir o ciclo inteiro da vida e da
morte. Será o grande deus civilizador que ensinará aos
homens, ainda imersos na barbárie e na ignorância,
as sagradas artes da agricultura e do culto. Ele tornará
próspero o Egito, espalhando a civilização por todo
o mundo, além de ser o primeiro deus a possuir a
forma humana e a reinar sobre as criaturas de forma
inconteste. Ísis, sua irmã e esposa, reinará ao seu lado
sobre as terras que circundam o majestoso Nilo, em
paz e harmonia, ainda que sob os olhos amargos de
inveja do sinistro Seth, sedento de maldade e poder.
Muitas histórias de heroísmo e vilania dessa
dinastia gloriosa ainda estão por acontecer: desde a
decadência natural do primitivo Rá, e de como Ísis
astuta lhe tomará o cetro, até o crime horrendo que
Seth perpetrará contra seu próprio irmão Osíris. Ao
fim de tudo, entretanto, o divino Hórus, filho intré-
pido do deus assassinado, retomará o cetro que por
direito eterno lhe cabe, enquanto Osíris irá reinar,
soberano, entre os mortos.
Estas histórias todas, porém, só nos serão conta-
das no seu devido tempo.







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