Bobby

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Dou uma nova olhada na papelada que Marianne deixou preparada com meus documentos sobre o balcão da sala. A tevê ligada num volume razoável reclama sobre um roubo próximo ao mercado de um bairro não distante, e o cheiro do café da mais velha já se espalha por toda a sala e cozinha.
- Ayle, fique atenta quanto ao horário. Já são sete da manhã. - ela toma um gole da xícara fumegante e limpa o resquício de torrada de meu queixo - não se atrase, não perca nenhum documento, e se precisar, ligue-me.
Jogo-me no sofá e aceno para Marianne enquanto ela sai apressada com uma bolsa no ombro. Logo eu precisaria sair. De acordo com a diretora que havia nos ligado ontem à tarde, finalizar minha matrícula no colégio local seria rápido e fácil, mas apesar de toda essa preocupação, fico imaginando se ontem o tal de Namjoon, ou Rapmon, seja lá como for, entregou a cesta para o "Senhor Falta-Modéstia", ou se havia apenas se aproveitado e comido tudo.
Depois de uns vinte minutos deitada no sofá, percebo que já está na hora de colocar uma roupa e sair, ou me atrasaria, e Marianne odeia quando me atraso para qualquer coisa que ela considera importantíssimo. Visto uma jaqueta sobre uma camisa branca simples, um jeans, e um tênis. Pronto. Sinto vontade de rir ao lembrar de como Bobby - um antigo amigo - brincava com meu estilo patético e nada admirável. "Como ficou, Bobby?" perguntei certo dia por skype, mostrando meu look para o casamento de sua irmã. Um jeans escuro e uma camisa que apesar de culta e chique demais para alguém como eu, comprei. "Tá de sacanagem, Aylee? Você fica linda de qualquer jeito! Mas se eu fosse você, apostaria num vestido azul.", respondeu, entre risadas. Apesar de nunca admitir para ele, eu o amava. O amava tanto, que fugiria com esse amigo para qualquer lugar em que se sentisse bem, ou doaria minha perna esquerda, ou a direita, ou até as duas. Eu o amava.
A rua estava vazia, sem jovens e crianças. Parte delas estava estudando, uma ordem que as segunda-feiras impõem. Ando com rápidos passos, imaginando se o mesmo garoto estaria na portaria, ou se estaria estudando, como todo jovem de sua idade.
- Bom dia. - cumprimento, ao ver novamente o jovem, que com um cigarro na mão se aproxima da janela e se apoia lá mesmo.
- Olá. - ele esbanja um sorriso quadrado e arremessa longe o cigarro ainda aceso.
- Não devia estar numa escola? E não é muito novo para fumar? Saiba que seus pulm... - ele estala os dedos e aponta para mim.
- Não é muito curiosa? - ele me observa por um instante, e então pigarreia - já deixei seu presentinho com o dono.
- Obrigada. - respondo, dando uma olhada no relógio de pulso - preciso ir. O cigarro ainda fumegava no chão frio quando passo pela portaria.
Andar por esse tipo de lugar, tão distante de onde eu morava, me faz me sentir uma completa desconhecida, no meio de tanta gente estranha. Graças às placas de aviso das esquinas, consegui encontrar o edifício de dois andares com as palavras "Seul Montain C. O."
- Acho que encontrei. - fora os jovens que estavam jogados pelo gramado, os alunos deviam estar em aula neste instante.

- Senhorita Aylee George? - pergunta a secretária de meia idade, que parecia bastante entediada.
- Sim. - ela digita algumas coisas, e abre uma gaveta.
- Preciso que assine isto e preencha alguns tempos que estão vagos.
- Ok. - deixo sobre o balcão os documentos que estavam em minha bolsa, e com uma caneta, preencho qualquer coisa naqueles espaços vazios. Estudar não era meu forte mesmo.
- Como os alunos já estão em aula, você começa amanhã. - ela me entrega um outro papel assinado por si mesma e pigarreia constantemente - assinando o que assinou, concorda em participar dos eventos extras.
- Só isso? - pergunto, observando o movimento do lado de fora da coordenadoria. O sinal havia tocado, avisando aos alunos que precisavam trocar de aula.
- Sim. A aula começa sete horas da manhã. Evite se atrasar. - ela parecia Marianne falando.
- Obrigada.
Encosto a porta atrás de mim, e caminho por entre os alunos apressados. Era a mesma correria e ar de estresse que no meu colégio anterior, mas eu não via nenhuma pessoa conhecida por ali, nenhum Bobby, ou professora Dianna... Eram só rostos desconhecidos aumentando cada vez mais ao meu redor. Por um instante sinto um desespero sufocante queimar em meu peito, e uma sensação de claustrofobia me força a me apoiar num armário qualquer para me recuperar. Eu esperava que fosse me adequar rapidamente, mas olhando agora, tanta gente estranha me faz perceber que eu não nasci para me misturar à elas. "Você só vai conhecer gente nova, e se acostumar com elas, quando tomar a iniciativa de falar com elas", repetia Marianne constantemente, o que não adiantava nada.
- Olá... Moradora nova não é? - ouço atrás de mim uma voz que lembro ter ouvido em algum lugar, e parece que um banho de alívio é despejado sobre minha cabeça, como se eu esperasse olhar para atrás e ver Bobby, de braços abertos para me aconchegar.
- Han? - viro-me num pulo, e dou de cara com a bela moça que abriu o portão para mim, quando eu pretendia entregar a cesta ao dono. A princípio, ela se afasta, assustada com minha reação, e então sorri.
- Está tudo bem? Acho que se lembra de mim. Vai começar aqui quando? - forço um sorriso amarelo, e sem motivo algum, balanço a cabeça positivamente.
- Estou atrasada, desculpe. - a menina franze o cenho e toca meu ombro, mas isso parece piorar a situação, porque a sensação era de que mil pessoas estavam me empurrando contra o chão.
- Você está bem? - pergunta, agora parecendo preocupada.
- Preciso ir. - sem esperar mais respostas ou perguntas, viro e saio com uma velocidade enorme. O que havia comigo?

Flashback on

- O que acha? Você vai? - pergunta Bobby, mostrando-me os dois belos convites cor de rosa com nossos nomes escritos em cor dourada. Uma bela caligrafia desenhada na parte de trás.
- E eu sou louca? - pergunto, puxando os convites de sua mão e arremessando-os longe. Ele estala os beiços e vai buscá-los.
- É nossa chance de estourarmos nossa bolha. Lembra-se do que a professora Dianna nos disse? - ele parece tão animado para a festa de uma menina que nos odiava e sacaneava sempre que podia.
- Vamos ser zoados, isso sim. Acha que ela nos convidou por qual motivo? Não seja ingênuo, Bobby. - foi triste ver a expressão que ele tentou esconder naquele momento. Bobby sempre foi um menino que buscava a popularidade, buscava ser divertido com todos, porque queria ser envolvido de amigos, mas nunca conseguiu nada além de mim.
- Tá. Tanto faz. Você vive escondida mesmo. Nessa sua bolha. Sabia que as vezes até eu fico achando que estou fora dela? - estapeio seu braço.
- Você é mais importante que o oxigênio dentro da minha bolha. - ele abafa uma risada e me puxa para seus braços, enquanto nos deitávamos sobre o carpete do quarto. Um tempo depois decidimos ir à festa, o que foi uma das piores decisões de nossas vidas.

Flashback off

Jogo-me no banco de madeira que ficava ao lado da portaria e respiro fundo o ar gelado. Eu só pensava em Bobby, Bobby, Bobby. Eu não fazia ideia do porquê estar me sentindo assim, talvez fosse uma recaída, ou só ansiedade pela mudança de colégio. Antes, pensar em Bobby ajudava, mas agora, não faz efeito, apenas piora. Não agora.
- Parece que algo deu errado. - ouço a voz do menino da portaria, tímida e levemente rouca. Abro os olhos e ele se aproxima, novamente com um cigarro na mão, mas desta vez com ele apagado. Não respondo, apenas fico imaginando que Bobby está ao meu lado.
Ele solta uma risada e se agacha ao meu lado, colocando o cigarro entre os dentes.
- Como se chama?
- Aylee. - respondo, me esforçando para parecer calma. Ele assente.
- Belo nome. Me chamo Namjoon. Mas me chame de Rap Monster, ou Rapmon.
- Ok, Rap Monster. - ele percebe que observo constantemente o cigarro entre seus lábios, então joga fora, resmungando, e enfia as mãos no bolso do casaco.
- Eu não estudo porque acho uma perda de tempo. E eu sei que sou novo demais para fumar. - fala ele do nada. Me forçando a fitá-lo por uns instantes.
- Também acho que estudar faz você perder tempo. Mas acrescenta no seu futuro. Minha irmã costuma dizer isso.
- Não vou querer curtir festas na minha velhice. Quero curtir agora. Viver minha juventude. Não se tem duas dela. - retruca ele por fim, me deixando sem argumentos.
- Não sei se estou convencida. - ele dá de ombros e comprime os lábios.
- Hoje vou sair com uns amigos. O que acha de ir? - mordo com força o interior de minha bochecha, imaginando Bobby me pressionando para aceitar aquilo. "Estoure essa bolha, Aylee". Essa frase ecoa em minha mente várias de vezes, enquanto Namjoon me observa com um olhar distante.
- Não vai dar. - ele bufa e estala os beiços.
- Tenho certeza de que está mentindo.
- Não estou, eu só... - ele pigarreia e resmunga algo.
- Olha, sugiro que aceite. Pense bastante.
- Tenho certeza que não vou poder.
- Ok. - ele joga os cabelos para trás e volta à cabine - preciso trabalhar. Interfono mais tarde para dizer o horário. Prazer, Aylee. Volte para casa, está frio. - assinto, e dou duas batidas de leve com os nós dos dedos na madeira da janela, me despedindo. Eu definitivamente não iria.

You Are In DangerOnde histórias criam vida. Descubra agora