O Lado de Dentro

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Estou me equilibrando em um empilhado de caixas para poder enxergar o lado de fora da pequena e alta janela que tem no cômodo. Sou proibida de fazer isso, mas é tão bonito aquele pequeno espaço fora do porão, que me faz imaginar como seria se não fosse tão perigoso sair. Me pergunto como esse pequeno espaço pode ser tão perigoso. É só um tapete verde, que eu sei que é grama, algumas poucas flores e uma cerca baixa, que indicava o fim daquele lugar. Além do enorme céu azul, que vai até onde não consigo ver e de longe é o que eu mais gosto de olhar. Mas como a janela é muito alta, e não tem onde eu me apoiar muito, preciso me equilibrar nas caixas. Também preciso sempre tomar cuidado, porque se cair ou fizer barulho, ele pode descobrir que estou fazendo isso sem a permissão dele. 

Sei que ele é meu pai, mas eu tenho medo dele porque é muito bravo e se irrita facilmente com tudo que faço. Acho que ele só se preocupa demais comigo, mas muitas vezes eu sinto que ele me odeia.

  — Marina? — Escuto meu pai me chamar do andar de cima e rapidamente desço, colocando as caixas de volta nos lugares. Escuto passos vindo para o porão e corro para a cama, após colocar a última caixa no lugar e pegar um livro para fingir que estava lendo o tempo todo. Nem três segundos depois eu me sentar e abrir o livro, a porta se abre. — Marina, o que está fazendo?

  —Nada de mais. Algum problema? — Digo com o livro aberto no meu colo, enquanto o olho.

  — Não... — Ele diz saindo e fechando a porta atrás de si. Consigo escutar o "click" da porta sendo trancada e suspiro, me sentindo um sufocada. Não gostava de ficar presa ali, mesmo já estando acostumada com isso. Deixo o livro de lado e começo a andar de um lado para o outro, procurando algo que não estivesse visto naquele lugar. 

O pequeno porão mal iluminado, com paredes cinzas e algumas coisas velhas, que somente tinha algumas coisas que faziam ele parecer um quartinho improvisado. Até o pequeno banheiro, que tinha no espaço em baixo da escada, não fugia disso, mas sempre consegui viver naquele lugar apesar de tudo. Sempre caminhando em círculos, desenhando coisas aleatórias, lendo ou apenas olhando para a janela, enquanto sonho acordada com o dia que poderia sentir aquela grama nos pés e olhar por aquele pequeno lugar que tinha lá fora. Faço essas mesmas coisas desde que consigo me lembrar. Os três livros que tem, já cansei de tanto que os li. Um é um livro de caligrafia, outro de história e o último é um livro que tem palavras e significados, e tem o nome de "Dicionário". As únicas vezes que li livros diferentes foi quando ainda estava aprendendo a ler e escrever. Quando eu via meu pai para outra coisa além de me punir, entregar comida e água, ou para ver se ainda estou viva e me comportando no porão.

Vou andando até o canto onde anotava os dias que se passavam. Eu percebi que sempre que um ano acaba, o céu explode em luz e cor, e quase sempre é 365 dias após a última vez, em algumas poucas vezes isso acontece após 366 dias. Depois que descobri isso consegui me guiar quanto minha idade, usando o que meu pai de disse na última vez que ficou me ensinando no porão. "Você já está com idade o suficiente, tem 5 anos, já pode cuidar de si mesma aqui em baixo sem precisar de minha ajuda". Na hora em que ele disse isso não percebi que ele estava me avisando que não desceria mais no porão a menos que muito necessário, se soubesse com certeza perguntaria o por quê. Sim, seria em vão isso, mesmo que eu tivesse perguntado naquela hora ele teria desviado da pergunta como sempre faz. Sempre penso nisso quando olho para aquela parede. 

Fico olhando a quantidade de riscos dos dias, passando os dedos cuidadosamente por cima deles e tentando me lembrar daquela parede quando começara a risca-la. Faz tanto tempo desde que eles não ocupavam grande parte dela.

Continuo daquele jeito, até que canso de ficar olhando a quantidade de dias marcados, lembrando o enorme tempo que estou nesse lugar, e me sento na cama, observando a luz que entrava pela janela. Não era muito forte, mas servia para iluminar um pouco o lugar, além de ser boa para ficar em baixo. Assim que percebo a luz assumindo e o céu assumindo tons de laranja, amarelo, rosa e violeta, monto a minha pilha de caixas para poder olhar pela janela. Mas, desta vez, havia algo ainda mais estranho que o pôr do sol para se ver.

Feita de Porcelana e Flores BrancasOnde histórias criam vida. Descubra agora