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A carne morta e malcheirosa, o cabelo loiro coberto de terra, os ossos a mostra em diversos pontos e a cor arroxeada que cobria a pele outrora alva, compunham o que sobrara do corpo da jovem, que agora estava sobre a mesa de pedra no centro da clareira.

A lua já havia sumido pela metade, e o feiticeiro agitou as mãos ao notar isso, chamando um grupo singular que se mantinha sob um carvalho próximo. Os cinco vieram, cada um com sua expressão triste e resignada de quem não tinha mais opções. Um soldado grande e forte fugido do castelo, um elfo verde e franzino, uma fada negra com olhos brancos que refletiam o laranja das chamas, um orc feroz com um olho faltando, e um lobo grande e cinzento coberto de cicatrizes. Cada um tinha perdido o suficiente para estar ali.

Ao redor da clareira os vários indivíduos se amontoavam, com medo o suficiente para até mesmo ser tocados pela luz das tochas. Os que eram corajosos o suficiente para chegar mais perto se limitavam a encarar o cadáver putrefato com dó e repulsa. O fato era que todos queriam estar perto o bastante para que conseguissem ver o ritual.

O feiticeiro tirou uma adaga do cinto e se voltou para a fada. Esta comprimiu os lábios com receio.

-É um mal necessário - disse o velho feiticeiro com tranquilidade na voz.

-Todos temos medo - esclareceu o soldado - mas é o único jeito.

Um pequeno grupo de fadas saiu voando da escuridão, elas pararam há alguns metros do corpo e encararam a companheira temerosa.

-Não queremos que ninguém mais se machuque - o soldado continuou.

Ela agitou as asas transparentes com nervosismo, lançando um olhar rápido para a esquerda, cuja metade superior estava dilacerada. Aquela fada jamais voaria novamente, e tendo consciência disso, suspirou e ergueu o braço. O feiticeiro levou a adaga à pele fina e negra como o céu noturno, fazendo jorrar sangue, tão negro quanto, sobre o peito aberto do cadáver. Quando certa quantidade já havia escorrido, o ferimento foi coberto com tiras de tecido e a guardiã da noite se retirou.

O orc veio em seguida e rosnou quando a lâmina perfurou o braço grosso. O sangue que escorreu era castanho e pegajoso. O lobo se sentou e gemeu por um segundo ao ser ferido, mas apenas no momento. Já havia sido ferido vezes demais, e a dor que sentia não era mais tão profunda. A pele verde do elfo jorrou sangue branco e grosso como a seiva das árvores que protegia.

Na vez do soldado, ele foi obrigado a tirar parte da armadura para que o corte fosse feito. Ele não gemeu tampouco demonstrou qualquer outro sinal de dor. Estava completamente ciente de que era o que queria, e dor nenhuma o privaria de continuar servindo a princesa. Era o que estava destinado a fazer quando entrou para a guarda real.

A lua já tinha ido quase que completamente. O velho observou o corpo roxo da jovem moça, afastou a barba e os cabelos prateados que lhe atrapalhavam e derramou o próprio sangue sobre ela no exato momento que a lua desapareceu por inteiro. Colocou, então, a mão sobre a testa dela e fechou os olhos, murmurando um encantamento e utilizando o poder do eclipse para dar força ao feitiço. A lua começou a surgir novamente quando ele terminou de proferir o encantamento.

-Precisamos de um herói neste momento de desespero – suplicou - Salve-nos.

Por alguns segundos cada ser presente aguardou apreensivo, e passado um certo tempo, todos começaram a pensar que algo havia dado errado. O feiticeiro prometera que funcionaria.

O brilho do luar tocou a pele dela. A mistura de sangue que lhe caíra no peito começou a borbulhar e crescer. O velho se afastou, assustado. Da mistura, saíram tentáculos.

"Não, não são tentáculos", pensou o velho.

Eram cipós.

Magia de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora