Capítulo 3

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Eu acabei perdendo toda a minha juventude temendo algo que eu não podia ver, algo com a qual não conseguia lutar nem me defender. A única coisa que eu podia fazer era esperar ele vir e dar um jeito de me livrar dele.
Passei horas na biblioteca procurando nos livros mais velhos como lutar contra o ceifador de almas. Mesmo os mitos mais antigos não me davam a resposta e a esperança que eu precisava.
Por muitas noites eu fiquei acordada pensando: "E se eu não tivesse acordado cedo?", " E se eu não tivesse sentado naquela cadeira na varanda?", "E se...". Esses pensamentos não mudariam o fato de que duas pessoas importantes haviam morrido eu não pude impedir.
No auge de meus 43 anos tomei uma decisão, arrumaria um emprego. Não dava mais para viver apenas da aposentadoria do meu pai, eu tinha que criar responsabilidades e arrumar um emprego, ter a minha própria vida e deixar de temer a minha própria sombra.
Ser mãe era um sonho que não poderia ser realizado, afinal o meu relógio biológico estava chegando ao fim e as chances eram mínimas. Menor ainda era a possibilidade de conhecer alguém a essa altura e manter um relacionamento sério, o que eu sempre evitei para que o ceifador não levasse mais um.
Contei ao meu pai quando eu consegui um emprego na livraria que tinha perto de casa, ele ficou feliz por mim e disse que já estava mais do que na hora de seguir a minha vida e esquecer das tragédias.
Apesar de ama-lo eu jamais contei sobre os sonhos e sobre como eu podia ter evitado a morte de minha mãe e irmã, acho que seria muito ruim para ele perder duas pessoas importantes e ainda ter uma filha consideravelmente louca.
Em uma tarde sonhei de novo. Eu estava na livraria e uma senhora chegou a procura de um livro de receitas. Eu a ajudei a procurar o tal livro recomendado por uma amiga e quando finalmente achei e fui entregá-lo, lá estava a mesma figura apavorante de antes. Dessa vez eu não fiquei parada, joguei o livro contra o monstro que estava em minha frente e corri para fora da livraria, mas quando fui atravessar a rua eu fui atropelada por um ônibus.
Acordei encharcada de suor pela manhã e corri a procura de meu pai, felizmente o encontrei sentado no sofá da sala vendo a televisão. Pedi a ele que ficasse em casa o dia todo e que em hipótese nenhuma saísse de casa.
Fui trabalhar pensando se meu pai ficaria bem se ele ficasse em casa e se dessa vez a morte me levaria, mas nada aconteceu. Meu pai ficou em casa como eu pedi e a senhora nunca veio buscar o livro.
A noite não consegui dormir e passei a noite toda acordada temendo sonhar com a morte novamente. Para a minha sorte a manhã chegou e eu fui trabalhar sem nenhuma preocupação, acho que dessa vez não foi um aviso e sim a minha mente me pregando peças.
Ao termino de um mês tive outro sonho. Dessa vez a livraria pegou fogo por causa de uma mulher que fumava um cigarro, apesar da minha advertência sobre aquilo.
Eu fiquei esperando o pior mais uma vez e nada aconteceu e o ciclo se repetia, a cada um mês eu tinha um sonho com o ceifador. Uma vez sonhei que um ladrão entrava na livraria e atirava em mim, outra vez eu fui esfaqueada por um louco que havia fugido do hospício e por fim sonhei que o meu próprio pai me estrangulava após descobrir a verdade sobre os sonhos e me culpar por tudo.
Meu pai estava com seus 74 anos e logo morreria da idade, bem foi isso que eu pensei, mas estava enganada. Já era perto do horário de fechar a livraria quando a senhora chegou procurando pelo livro de receita. Fiquei em estado de choque, depois de tantos meses o primeiro sonho iria acontecer, mas e os outros? Os outros também.
- Menina! Eu pedi um livro a você, não vai pegar?
- Não tente me enganar! Eu sei que é você! - respondi me levantando.
A senhora a minha frente mudou, seu rosto sumiu e o que eu via a minha frente era a figura de sempre. O ceifador alto e sem rosto, com a sua foice afiada em uma das mãos pronto para levar a alma de alguém.
Quando eu achei que iria morrer escuto a porta abrir e vejo meu pai entrando.
- Pai! - foi a única coisa que gritei antes dele ser jogado para fora da loja e ser atropelado, como eu havia sido no sonho.
Tentei correr ao seu encontro do lado de fora, mas as chamas começaram a consumir a livraria. Me deparei com a mesma mulher fumante parada perto da prateleira em chamas, que alcançaram a porta e bloquearam a minha passagem.
A figura da mulher se transformou no homem que me deu um tiro na perna. A dor me fez cair ao lado do caixa e eu tentei fugir do louco que vinha para cima de mim com uma faca. Golpe após golpe eu gritei desesperada, rezando para que tudo aquilo passasse, porém não passou. Por fim a figura mais temida, meu pai.
Eu não conseguia me mover, apenas observava meu sangue escorrer pelo piso da loja. Senti suas mãos frias em meu pescoço e a vida deixar meu corpo lentamente, até não sentir mais nada e meus olhos pesarem mais que um trem. "Eu finalmente morri!", foi o que pensei, mas era um engano. Acordei no hospital da cidade.
Recebi a notícia de que meu pai havia morrido e a livraria que eu trabalhava foi incendiada por um louco que a invadiu após um assalto. História muito confusa essa, porém essa era a que circulava pela cidade.
Quando voltei para casa as pessoas vieram me visitar demonstrando a sua compaixão, já que eles todos achavam que tragicamente eu perdi toda a minha família ao longo de anos em tragédias e que nunca pude ter a minha própria família.
Agora eu escrevo a minha história enquanto o ceifeiro me espera na sala de estar. Ele me disse que eu já havia o divertido bastante e que agora ele havia achado uma nova pessoa para brincar.
- Deixe-me registrar a minha história. - pedi a ele.
- Pra quê? Ninguém vai acreditar de qualquer jeito. - respondeu.
- Eu sei, mas a nossa história continua com a nossa descendência, a nossa família e no caso eu não tenho mais isso.
- Está certo. Vai rápido então estarei esperando aqui.
E agora que eu contei a minha história irei me deixar levar por ele, como um amigo que está me levando para uma viagem de férias, claro que não tem volta, só que se eu ficar não há nada para amar, não há ninguém para conversar ou para ficar ao meu lado.
Agora eu vou com o ceifador encontrar tudo o que ele pegou sem pedir como uma criança mimada. E quanto a próxima vítima dele, não sofra tanto, apenas aceite e espere a sua hora chegar, pois, apesar do ceifador ser mimado ele nunca se esquece de seus brinquedos.

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