Capítulo 1:Lena

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Em primeiro lugar, esta é uma história cheia de outras histórias. Mas vou tentar começar por onde eu me lembro de ter começado tudo. É difícil para mim se situar no tempo. Você nem imagina. Mas ainda assim, eu vou tentar.

Eu me lembro da casa do campo de quando eu era pequena. Minha família ia para lá todo verão, fugir um pouco do ar confinador que Londres quase sempre tem. Eu me lembro das brincadeiras bobas que inventava quando era apenas uma garota boba, de fingir que minha mão era um avião voando a velocidades incríveis pela paisagem que deslizava na janela do carro de papai no caminho para lá. Sinto saudades daquele tempo.

Lembro de correr pelos campos, rindo e quase esbaforida junto com outras crianças. Muitos dos meus colegas eram do tipo mais introspectivo, mais interessados em brinquedos eletrônicos e tecnológicos. "Hologames" e essas coisas. Mas eu sempre fui do tipo que adorava correr e pular atrás ou em busca de qualquer coisa até cansar meus pulmões e sentir as pernas molengarem. 

Ou pelo menos todo o meu mundo era assim até aquele dia. Eu me lembro que tínhamos jantado. Eu, mamãe, papai e Jon, meu irmão mais velho. Papai ligou a TV e se sentou confortável na sala, enquanto Jon foi ajudar mamãe com a louça. Papai sempre foi um homem muito calmo, com um sorriso largo atrás de um par de óculos que davam a ele um ar intelectual e um pouco charmoso. Ele tinha certo gosto pelas coisas e aparências antigas, acho que por isso preferia o suéter de lã por baixo da jaqueta. Lembro das várias vezes em que mamãe me recebia assustada pela sujeira e machucados que eu conseguia sempre trazer para casa, mas papai parecia estar sempre calmo e centrado. Uma ou duas vezes ele deu alguma bronca séria em mim, mas porque realmente eu tinha aprontado de verdade nessas ocasiões, mas essa é uma outra história. Naquele dia, uma notícia cruzou a tela e pela primeira vez em muito tempo, eu vi papai sinceramente assustado.

Eu não sabia muito bem naquela época o que eram os ômnicos. Entendia que eles eram robôs operários e que ajudavam as fábricas, mas pouco mais do que isso na época. Eu mesma tinha um boneco robô de pelúcia com quem vivia colada. Era o Tin. Ele também é outra história.

A moça na TV falou de uma tragédia. Milhares de mortes no mundo todo por causa de alguma coisa relacionada aos robôs ômnicos. Rio, Nova Iorque, Pequim, Paris, Moscou... Eu não conhecia nenhum desses lugares na época, mas imagens de pessoas desses locais correndo e gritando desesperadas no meio de muita fumaça assustariam qualquer criança. Ninguém sabia explicar muito bem o que estava acontecendo, a moça das notícias também tentava encher o tempo de fala com estatísticas e outras informações. Tudo isso parecia bem distante, até uma palavra me assustar: "Londres." Pensei nos meus amigos. Pensei na minha escola. Nas minhas professoras. Pensei em tudo.

Papai desviou seu olhar estarrecido por uma fração de segundo da tela até me ver atrás dele. Ele rapidamente refez seu semblante, me pegou no colo e fez questão de me dizer que tudo ficaria bem. Que as pessoas boas iriam lá ajudar aquelas pessoas e resolver tudo. Mal sabíamos nós que aquele dia mudaria tudo. Mas ainda assim, ainda me lembro dele me abraçar e dizer: "Calma, amor. A cavalaria chegou."

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