V - Invada prédios mal-assombrados

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Juntei todos os meus pertences pela manhã e saí da casa de Lisa sem me despedir. Para não quebrar as regras da boa educação, deixei apenas um bilhete agradecendo a estadia sobre o sofá. Não estava de bom humor, e não queria acabar sendo grosso com ela. Sou péssimo com despedidas e tenho consciência disso. Entrei no carro prateado que se encontrava na rua quente de início de manhã e girei a chave, ligando o motor.

Dirigi novamente para o Instituto de Saúde Mental, já que não queria sair dali sem fazer o que eu tinha prometido na primeira vez que vi aquele vídeo. Não era possível que eu fosse tão imprestável à ponto de não conseguir completar um simples desejo como esse.

Estava enfrentando um dilema sério entre desistir do passeio ou completar um objetivo pela primeira vez quando vi o telhado principal do antigo sanatório despontar atrás de algumas casas. O edifício apresentou-se de maneira bem menos assustadora sob a luz tranquilizante do sol. Respirei fundo a brisa matinal, com o intuito de tranquilizar-me.

Agora eu conseguia vê-lo com maior clareza: o prédio, monumental com seus 4 andares, me lembrava muito os dos jogos da franquia outlast. As paredes brancas com tinta descascada e deteriorada pelo tempo apresentavam inúmeras pichações. Em múltiplas cores e formatos, as frases tomavam lugar lado a lado, de maneira a cobrir todo o complexo que envolvia o sanatório. Entre dezenas de declarações de amor, poemas perdidos, sussuros invalidados e palavras esquecidas, ainda haviam partes legíveis. No momento, as únicas que me recordo são um "Nem a estagnação desse ambiente se compara ao vazio de minha alma", em tinta vermelho-sangue junto à um símbolo da anarquia e um oportunista "fora Temer!".

Enquanto eu tentava criar um contexto em minha cabeça para toda aquela situação, analisei o território delimitado por grades pretas que faziam sombras com formas divertidas sobre o chão. Desci do carro e parei na calçada, ainda encarando o edifício. Caminhei até o portão, e olhei para os dois lados procurando mais alguém na rua. As casas ao redor eram todas de tijolinhos, e davam ao lugar uma aparência pacata e tranquila, em contraste com a construção do século XIX logo à minha frente. Empurrei com as mãos o umbral de ferro que rangeu e ameaçou cair, mas manteve-se nas dobradiças.

Pisei cuidadosamente na grama extremamente alta que tomava lugar atrás das grades, analisando o melhor caminho para entrar no prédio. Decidi seguir algumas pedras soltas, onde eu não teria risco de topar com algo desconhecido no meio do mato. Andei pé-ante-pé até a soleira da porta, onde alguns folhetos de propaganda estavam espalhados. Observei mais atentamente o emaranhado de frases que se concentrava principalmente próximo às portas principais. Perto delas, se lia:

"sente-se aqui
conte-me sua história
e deixe-me agradecer
pelo pequeno universo que você me proporciona"

Analisei a tinta azul desgastada da caneta, tentando mesurar a quanto tempo estava ali. Podiam tanto ser anos quanto dias. Aquelas palavras estavam eternizadas ali. Assim como quem escreveu. Assim como a pessoa para qual ela escreveu.

"Quando um poeta se apaixona por você, você nunca realmente morre"

A voz tão conhecida sussurrou em meus ouvidos, e peguei rapidamente uma caneta na mochila. Achei um espaço em branco no meio de todas aquelas mensagens e escrevi essas palavras, com letra caprichada. Era, de certa forma, tranquilizante saber que aquele pensamento também estava eternizado em um pedaço sólido de madeira. Assim como eu. Assim como para quem eu escrevi.

Tirei a câmera da bolsa e apertei o botão para salvar uma foto. Ela começava a ser imprimida quando algo atrás de mim tocou minhas costas, soltando um grito gultural. Senti minha espinha gelar e me virei para trás num impulso, preparado para acertar o que estivesse ali enquanto gritava de volta.

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⏰ Última atualização: Jun 24, 2017 ⏰

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