Prefácio

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Senti a vibração de todas as células de meu corpo quando uma rajada de vento gélido passou por mim com um uivo. Inspirei e respirei calmamente, esperando a coragem indômita atingir-me. O sol já havia se posto, então a única fonte de luz, que me permitia ver o grande abismo à minha frente e o chão à exatos 505 metros, era a lua pálida no céu escuro.

Tive medo. É claro que tive. Uma pequena parte racional de meu cérebro tentava me mostrar outras saídas, mas a maioria esmagadora sabia que elas não existiam. Nada mais importava. As pessoas que conheci, os lugares que visitei ou as coisas que vivi. Ou, talvez, eles importassem de mais, já que, de uma maneira ou de outra, me levaram ali. Mas naquele momento, era apenas eu, a vegetação rala ao meu redor e o precipício à minha frente.

De repente, um grupo de morcegos passou por mim voando e me assustou. Como consequência, uma dose de adrenalina foi liberada em minhas veias. Senti a coragem tomar o lugar que antes era preenchido pelo medo. Os únicos sons audíveis eram os do sangue pulsante e das batidas de meu coração, além das vozes nos meus pensamentos, que pareciam possuir amplificadores. Senti que, por uma única vez, alguém realmente me escutara.

Decidi acabar com aquele jogo sádico e me preparei para o passo fatal quando uma das vozes se sobressaiu. "Antes de morrer, quero escrever um livro." E a coragem logo cedeu espaço para a culpa. Sentei-me ali mesmo, balançando as pernas no profundo abismo e peguei minha mochila em minhas costas. Abri-a, e a ideia de me jogar já parecia idiota. Apanhei um caderno, que estava com a capa rasgada, mas não me importei. Revirei o conteúdo da bolsa à procura de um lápis, mas tudo o que encontrei foi uma caneta.

E então comecei a escrever, o que me trouxe aqui.

Desculpe-me por começar pelo final, mas como disse uma vez Machado de Assis, é uma maneira de ser épico. Eu não sei se alguém vai ler isso. É possível que chova e essas palavras sejam levadas pela água juntamente com meu sangue quando eu me for. Talvez elas sejam esquecidas comigo, mas está tudo bem. Ou quase tudo bem. O esquecimento é inevitável.

Primeiramente, vamos às considerações sobre o que estou fazendo e que tipo de mensagem quero passar. É mais difícil do que eu pensei expressar a confusão que é minha cabeça em palavras, mas juro solenemente (não fazer nada de bom) tentar. Uma vez, Charles Buckowski disse "ache aquilo que ama e deixe isso te matar". Acho que é o mais próximo de explicar o que está acontecendo que eu posso chegar. Sou apaixonado por pessoas. Por sensações. Por palavras. E talvez meus sentimentos abstratos, misturados com pensamentos visionários e inabituais tenham feito quem eu sou. Nunca vi muita fé no mundo. É um lado meu que quase ninguém conhece, e que eu sempre tentei ao máximo esconder. Não consigo entender como puderam deixar o mundo chegar onde está. Uma comunidade que sobrepõe a manutenção da sociedade de consumo ao seu bem estar físico e psicológico. Sofrimento, dor, perda, infelicidade. É de mais para mim.

Em uma tentativa de encontrar a explicação para o porquê de o mundo ir de mal a pior, um cientista uma vez disse que a probabilidade de a humanidade não estar sendo controlada por seres "superiores" é de, tipo, 1 em 1.000.000. E como qualquer pessoa entende mais de qualquer coisa que eu, decidi confiar nele. Faz mais sentido do que acreditar que um Deus qualquer nos colocou aqui com o intuito de evoluir. Nós só regredimos.

Inúmeras discussões sobre o sentido da vida depois da leitura do artigo de Richard Terrile, um amigo me indicou Matrix. No final do filme, eles explicam por que o simulacro era defeituoso: tentaram fazer uma experiência perfeita e os humanos não se adaptaram. Precisavam da violência, da morte e do desespero. São sentimentos intrínsecos. Nos tornam pessoas melhores. Mas talvez eu não queira ser uma pessoa melhor. Talvez eu só queira, de alguma maneira, ter o que é importante sem precisar do ruim para o parâmetro. Só viver. Aproveitar o que eu ainda tenho.

Mas é difícil de mais se livrar das amarras.

Ignorar toda a fome, a miséria e a guerra.

A morte.

É de mais para mim. 

Por mais que eu queira tentar, me parece impossível. Uma outra vez, em um livro que retrata sua juventude, Ham On Rye, Buckowski citou "Que tempos penosos foram aqueles anos - ter o desejo e necessidade de viver, mas não a habilidade". Talvez a simplicidade com que Charles coloque sentimentos tão abstratos e incomuns em palavras simples seja o que o torna meu escritor favorito, além do fato de eu me identificar muito com ele. O que pode ser uma coisa boa, já que ele é um dos poetas mais famosos de todos os tempos, ou ruim, por que ele é famoso pelo realismo sujo: discreto, irônico, às vezes violento, mas insistentemente compassivo. Talvez eu siga essa linha, já que não posso – e nem quero – esconder nada. Meu primeiro (e maior) motivo para escrever isso, é procurar, nas entrelinhas de minha história, um manual de como aprender a habilidade para viver. E eu não vou conseguir isso me iludindo mais.

 A vida sempre é discreta, irônica, às vezes violenta, mas insistentemente compassiva.  

Tendo em vista essas observações e a minha constante falta de esperança na humanidade, você pode estar se perguntando por que estou escrevendo isso, afinal, estou prestes a pular de uma altura da qual se é impossível sobreviver à queda. Mas eu preciso de que alguém saiba o que me levou à partir, ou então provavelmente não terei descanso. E eu preciso muito de paz. É um capricho besta. O último pedido do homem morto.

Além de ensinar passo a passo como terminar igual à mim, – recomendo estritamente que não os siga –  esse livro é algo que representa mais do que um simples diário ou coisa do tipo. Mais do que um relato detalhado de como eu me levei à auto destruição em uma única viagem, de uma representação quase perfeita da mente conturbada de um adolescente, e até mesmo da procura de um motivo para viver, também é minha carta de suicídio.

O honorável manual do fracasso #Wattys2016Onde histórias criam vida. Descubra agora