Havia à Rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu com as últimas reconstruções.
Tinha três janelas de peitoril na frente; duas pertenciam à sala de visitas; a outra a um gabinete contíguo.
O aspecto da casa revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação.
A mobília da sala consistia em sofá, seis cadeiras e dois consolos de jacarandá, que já não conservavam o menor vestígio de verniz. O papel da parede de branco passara a amarelo e percebia-se que em alguns pontos já havia sofrido hábeis remendos.
O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente azul tomara a cor de folha seca.
Havia no aposento uma cômoda de cedro que também servia de toucador, um armário de vinhático, uma mesa de escrever, e finalmente a marquesa, de ferro, como o lavatório, e vestida de mosquiteiro verde.
Tudo isto, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como aqueles cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio. Não se via uma teia de aranha na parede, nem sinal de poeira nos trastes. O soalho mostrava aqui e ali fendas na madeira; mas uma nódoa sequer não manchava as tábuas areadas.
Outra singularidade apresentava essa parte da habitação: era o frisante contraste que faziam com a pobreza carrança dos dois aposentos certos objetos, aí colocados, e de uso do morador.
Assim no recosto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste momento uma casaca preta, que pela fazenda superior, mas sobretudo pelo corte elegante e esmero do trabalho, conhecia-se ter o chique da casa do Raunier, que já era naquele tempo o alfaiate da moda.
Ao lado da casaca estava o resto de um trajo de baile, que todo ele saíra daquela mesma tesoura em voga; finíssimo chapéu claque do melhor fabricante de Paris; luvas de Jouvin cor de palha; e um par de botinas como o Campas só fazia para os seus fregueses prediletos.
Sobre um dos aparadores tinham posto uma caixa de charutos de Havana, da marca mais estimada que então havia no mercado. Eram regalias como talvez só saboreavam nesse tempo os dez mais puros fumistas do império.
No velho sofá de palha escura, havia uma almofada de cetim azul bordada a froco e ouro. A mais suntuosa das salas do Rio de Janeiro não se arreava por certo com uma obra de tapeçaria, nem mais delicada, nem mais mimosa do que essa, trabalhada por mãos aristocráticas.
Passando à alcova, na mesquinha banca de escrever, coberta com um pano desbotado e atravancada de rumas de livros, a maior parte romances, apareciam sem ordem tinteiros de bronze dourado sem serventia; porta-charutos de vários gostos, cinzeiros de feitios esquisitos e outros objetos de fantasia.
A tábua da cômoda era verdadeiro balcão de perfumista. Aí achavam-se arranjados toda a casta de pentes e escovas, e outros utensílios no toucador de um rapaz à moda, assim como as mais finas essências francesas e inglesas, que o respectivo rótulo indicava terem saído das casas do Bernardo e do Louis.
A um canto do aposento notava-se um sortimento de guarda-chuvas e bengalas, algumas de muito preço. Parte destas naturalmente provinha de mimos, como outras curiosidades artísticas, em bronze e jaspe, atiradas para baixo da mesa, e cujo valor excedia de certo ao custo de toda a mobília da casa.
Um observador reconheceria nesse disparate a prova material de completa divergência entre a vida exterior e a vida doméstica da pessoa que ocupava esta parte da casa.
Se o edifício e os móveis estacionários e de uso particular denotavam escassez de meios, senão extrema pobreza, a roupa e objetos de representação anunciavam um trato de sociedade, como só tinham cavalheiros dos mais ricos e francos da Corte.