Os Três Lobinhos

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Existe uma lenda, que toda mãe loba conta a seus filhotes, sobre uma época em que

os lobos reinavam soberanos pela Terra. Predadores poderosos que eram, mantinham os

outros animais sob um rígido controle, guardavam os tesouros da natureza e reportavam-se

diretamente a ninguém senão os próprios deuses.

Porém, um dia, sob a injusta acusação de que estavam crescendo fora do controle e

devorando toda a Criação, os celestes proibiram os lobos de comerem os outros animais, em

especial, aqueles mais fracos, sem presas e de rara inteligência, como os porcos e os

humanos. Todo lobo que violasse a lei estaria condenado a morrer de maneira divinamente

dolorosa.

Temendo o castigo, os lobos obedeceram, e seu glorioso tempo foi sucedido por uma era de

fome e comiseração em que praticamente desapareceram. Para sobreviver, muitos se tornaram

fracos e pequenos, sombras infantilizadas da grandeza de outrora, e foram chamados de cães.

Outros tiveram seu espírito partido e, em meio à fome, passaram a se alimentar de restos

putrefatos que outros predadores deixavam para trás. Estes foram chamados de hienas, que

não riam de regozijo, e sim porque o desespero se avizinha à histeria.

Enquanto isso, para a revolta dos lobos, os porcos e os humanos cresciam, engordavam,

construíam casas, cidades, pontes, fornicavam e infestavam o mundo com nada além de sujeira

e devassidão.

Da numerosa população de lobos, restou apenas um punhado de bestas raquíticas e famintas,

reclusas na floresta, aguardando o dia em que a arbitrariedade dos deuses lhes libertaria,

enfim, do fardo de viver.

Mas nem todo lobo havia se conformado. Indignados de tanto ver seus parentes definharem

até a morte, três pequenos e corajosos irmãos resolveram se rebelar contra a lei.

O primeiro quis comer a carne de um porco, que fugiu e se escondeu numa casa

intransponível como uma obsessão. Do lado de dentro, o porco e seus irmãos gordos e

preguiçosos caçoavam do esfomeado lobinho, que tentou entrar pela chaminé, mas caiu dentro

de um caldeirão cheio de azeite fervente. Morreu em agonia, virado numa grande massa de

pele e carne coberta de bolhas.

O segundo atacou uma criança humana que caminhava sozinha pela floresta. Logo depois de

devorá-la, o pobre teve a barriga aberta por outro humano, que dela tirou a menina, a quem os

deuses certamente sorriram, pois saíra viva e inteira. Enquanto o lobinho, pobre lobinho,

agonizou até a morte só porque tivera fome.

O terceiro era o mais fraco de todos, mas o destino de seus irmãos não lhe assustara. Pelo

contrário, deu-lhe ainda mais forças para enfrentar os deuses. Perto de si, ele ouviu a voz

aguda de um filhote de humanos, gritando: "O lobo, o lobo!". Achou que havia sido avistado e

se escondeu atrás de uma moita. Logo em seguida, uma multidão de gordos veio socorrer o

menino, que caiu na gargalhada, pois só queria pregar-lhes uma peça.

O lobinho sentiu desprezo por aquela visão, que por mais duas ocasiões se repetiu.

Desprovido de honra e respeito, qualidades inerentes a todo lobo desde que nasce, o menino

debochava dos humanos mais velhos, que queriam apenas protegê-lo. Mas protegê-lo de quê?

Os lobos estavam praticamente extintos, enquanto aquela raça pelada e ignorante estuprava a

natureza, mijava nos rios, assassinava animais e se espalhava pelo mundo como pulgas sobre

um cadáver na floresta.

Pela quarta vez, ele ouviu o menino gritar: "O lobo, o lobo!". Mas fartos daquela

brincadeira, os humanos não se importaram. Espreitando atrás de sua moita, o pequeno lobo

espumou de raiva. Ainda que soubesse que o castigo era certo, não teve dúvidas: saltou direto

sobre o peito do menino, mordeu-lhe a jugular, e não apenas o devorou, mas o fez com raiva e

orgulho.

Instantes depois, ao ver somente a poça de sangue e ossos abaixo de si, rosnou para o céu

aguardando pela derradeira desgraça e uivou: "Eu fiz o que fiz porque tinha fome, e de nada

me arrependo! Disseram-nos que estávamos destruindo a Criação, mas em minha barriga jaz o

verdadeiro culpado! Jogai-me um raio, mandai o dilúvio, rompei a terra sob minhas patas,

castigai-me com essa ilusão que chamais de justiça, mas a vós, "deuses", cuja sabedoria

extinguiu meu povo, eu repito: de nada me arrependo!".

O bravo lobinho aguardou o castigo de olhos fechados. Mas não veio o raio, nem o dilúvio,

tampouco a terra se partiu debaixo de si.

Ao invés de amaldiçoado, o lobinho se descobriu recoberto de bênçãos. Talvez os deuses

concordassem com ele, e os humanos, ao menos alguns deles, não merecessem regalias

especiais. Sentiu a carne macia derreter em seu estômago enquanto revigorava-lhe os

músculos, sentiu a língua quebradiça se refrescar no sangue quente e doce, cujo sabor se

harmonizava com outro que se espalhava por sua boca: o do pecado.

Finalmente o lobinho descobriu como salvar seu povo. Voltou para a toca correndo e

ensinou seus pais e irmãos a se espreitar pelas sombras das matas e florestas, depois vilas e

cidades, quartos e debaixo das camas, farejando o cheiro acre da mentira e do cinismo, que

diferenciam os que podem ser comidos dos cada vez mais raros protegidos pelos deuses.

A comida dos lobos novamente ficou farta e eles voltaram a prosperar. Não da maneira

grandiosa de outrora, pois isso leva tempo. "E enquanto as areias do tempo caem", toda mãe

loba conta aos filhotes, "aos poucos se esgota a era dos homens, soterrados pelos próprios

vícios, enquanto ressurge o verdadeiro caminho: o caminho dos lobos."

Branca dos mortos e os 7 zumbisOnde histórias criam vida. Descubra agora