Prólogo

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A memória é uma das maiores mentiras da mente.

Ela finge velar todos os nossos momentos, dos mais preciosos aos mais simples, prometendo mostrá-los em detalhe quando comandada. Todavia, vigia com muito mais esmero as lembranças que mais queremos esquecer. As lembranças mais frias, as mais duras... Geralmente, também, as mais claras.

— Trechos de um diário esquecido —

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PRÓLOGO


HARANO!!  Gritou, agonizando ao ver o esposo cair mais uma vez sob a magia da bruxa.

Correu mais rápido escadas acima, esperando que pudesse fazer uso do ganho de tempo que seu marido lhe oferecera. Sua filha estava no topo da escada, segurando a mão da pequena irmã mais nova. Dashine esforçou-se para desembaçar sua visão, mas as lágrimas fizeram força por seus cílios. Foco, foco! Pensou, mordendo o lábio inferior. Não temos tempo! Levou as mãos trêmulas para as meninas, ajoelhando para ficar à altura delas, e as abraçou. Um guarda correu até ela, colocando-se entre a Rainha e a bruxa que poderia subir a escada a qualquer momento.

Ouviram um grunhido molhado e grave e Dashine sentiu seu corpo tremer e esfriar ao levantar para espiar por cima da amurada. Harano agonizava com sua espada fincada em seu peito, segura pela mão da maldita.

A Rainha sentiu como se fosse seu próprio peito a ser transpassado, dobrando o corpo em dor quando a mulher odiosa virou a lâmina impiedosamente e seu marido agonizou mais uma vez. Soluçou por um segundo, ofegante, se afastando e virando para as meninas. Levou a mão à boca tentando não chorar, engolindo o grito de dor que queria crescer em sua garganta  suas filhas precisavam acreditar que tudo estava bem.

Olhou para a menor que chorava silenciosa com um corte em sua mão. Dashine tomou a mão pequenina na sua e a beijou:

Cure-se.  Disse e o corte se fechou, deixando apenas uma fina cicatriz quase imperceptível. Respirou pesado e abraçou as duas filhas.  Vocês vão ficar seguras. Eu prometo que vai ficar tudo bem... O papai e a mamãe vão encontrar vocês depois...

Tentou sorrir, mas seus lábios trêmulos não sabiam mais como. A mentira lhe pesava demais.

Senhora...?  O guarda chamou, ela mirou o rapaz de cabelos longos e cinzentos.  Tem certeza que deseja fazer isso?

Dashine ouvia os lamentos das pessoas ao longe, atacadas pelos Trolls, servos da cruel invasora. Ela assentiu algumas vezes.

É o certo. Lá, Ush'Ôrya não as encontrará.

O guarda engoliu seco e apoiou a mão no ombro da Grande Rainha. Dashine começou a entoar o poderoso encantamento, as mãos segurando as das filhas. Uma luz colorida e cegante preencheu as duas crianças ao final das palavras complicadas e ela caiu aos pés do guarda, fraca e sem conseguir se mover. Não havia mais esperança para ela, podia ouvir os passos pesados da bruxa se aproximando pelos degraus enquanto uma réstia de vida se esvaía junto de sua magia. Tentou acalmar o que sobrava de sua mente revolta. Suas filhas estavam salvas e retornariam quando o reino fosse seguro para elas. Elas retornarão... Pensou debilmente. O guarda já havia se afastado, cumprindo as ordens de ajudar o máximo de civis a evacuar o castelo. O exército estava a caminho, talvez poderiam salvar o que restava do castelo. Talvez...

Sua visão se escureceu pouco a pouco, junto de sua consciência, e ela sentiu uma brisa gélida envolvê-la.

O silêncio. E o breu.

A Coroa e a SombraOnde histórias criam vida. Descubra agora