I. II

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   Na manhã seguinte, acordou ainda atordoada com o evento da noite anterior.
 

  A segunda-feira tinha o dom de ser maçante e desanimadora mesmo nas primeiras horas do dia.
   Depois de uma conferida em sua mochila, passou uma alça pelo ombro e desceu para cozinha.

   — Bom dia! — Safira cumprimentou Dona Esmeralda e a moça ruiva, sentadas a mesa.

   — Bom dia, preciosa. — Respondeu D. Esmeralda, sempre simpática. — Se acordasse um pouquinho mais cedo não precisaria sair de casa com a barriga vazia. — Repreendeu a proprietária da residência.

   — Já é um milagre eu conseguir acordar. — Respondeu Safira incentivando seu bom humor a acordar. Dona Esmeralda provocava isso nas pessoas. Trazia o melhor delas à tona.

   Ao terminar de beber uma xícara de café, Safira despediu-se de ambas e saiu.

   Conciliar estudos e trabalho era uma árdua tarefa para Safira que se esforçava em manter suas notas entre sete e dez. Em época de prova, doses extras de cafeína se faziam úteis e necessárias depois de chegar cansada do trabalho. Com sua cama ali, tão atraente e convidativa, a tentação era grande para seu corpo entorpecido.

   Iniciando mais uma semana de aulas, Artes encabeçava a grade de horários.

   Safira tinha a forte impressão de que a preguiça era um membro do corpo da voluptuosa professora. As anotações, geralmente eram ditadas do conforto de sua cadeira, e raramente ultrapassavam vinte linhas, para o alívio dos alunos.

Com os braços cruzados sobre o livro, a professora esperava o fim do murmurinho no fundo da sala e então iniciou seu trabalho naquela manhã nublada, dando continuidade a aula anterior sobre Surrealismo.

   — Ao contrário dos artistas abstratos que dispensavam a figura, muitos autores surrealistas davam um tratamento cuidadoso à imagem, pois por meio dela queriam contar histórias, sem muito sentido, mas que provocasse impacto no espectador. — A professora deixou o livro de lado, pegou uma pilha de folha sulfite e distribuiu. — Nada de releituras hoje. Quero ver a criatividade de vocês em trabalhos originais. Para lembrar aos desavisados, estamos falando sobre Surrealismo.

   Safira pousou o lápis sobre a folha e fechou os olhos, pensando em que imagem daria vida, então sua concentração se foi com uma lufada de vento furiosa e a noite de domingo lhe tingiu os pensamentos. Logo a lembrança do medo que sentira e sua morte eminente saltaram para o papel em movimentos rápidos e suaves. Em uma breve olhada no que já havia desenhado, descartou o uso das cores e criou o efeito noturno e sombrio com um lápis 6B.

   A professora parou ao lado de sua mesa.

   — Com licença. — Pediu pegando a folha e ficou olhando o desenho por um momento. — Não trouxe seus lápis, Safira?

   — Esqueci. — Respondeu. Para Safira era sempre mais fácil concordar do que explicar.

   — E que história esse desenho conta?

   O sinal tocou.

   “Salva pelo gongo.”, pensou Safira quando a professora devolveu seu trabalho e lhe deu as costas.

   Depois de mais duas aulas, Safira saiu para a merecida pausa do intervalo. Assim que  pegou o celular na mão para se entreter naqueles breves minutos, o aparelho vibrou, exibindo no visor uma morena de longos cabelos, carregando um sorriso suave. Safira atendeu. Era Kyra, sua amiga.

   Sua beleza, tão exótica quanto seu nome, chamava a atenção por onde quer que passasse. Cabelos longos, naturalmente preto e liso como o de um índio, a pele parda e os olhos levemente puxados num tom de castanho claro, realçavam sua beleza. Elas haviam se conhecido no orfanato, logo que Safira chegou ao local. A mãe de Kyra contribuía com generosas doações ao orfanato e fazia visitas periódicas às crianças. Kyra, talvez por ser filha única, adorava acompanhar a mãe. Depois de algumas visitas e tentativas frustradas de aproximação, conseguiu cativar Safira.

O Toque Da MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora