A Estrela que Morde

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Amélia

     Estou pronta para a missão de hoje, desta vez vou tirar o sofrimento de um recém-nascido. Passei algumas semanas observando o dia a dia da mãe e sua criança, refleti diversas vezes se aquilo seria o melhor a fazer, e certamente sim, a criança passaria fome, frio, e sua infância não seria divertida. Reforçando, estou pronta.

     Olhei-me no espelho quebrado do meu quarto improvisado, arrumei minha franja e a maria-chiquinha. O macacão azul está muito manchado com sangue de outrora, o odor é perceptível mas não me incomoda, estou acostumada, mesmo assim precisarei arranjar alguma forma de disfarçar o cheiro, deixar um rasto para olfatos apurados não seria uma boa ideia.

     Respirei fundo, não será uma tarefa fácil, na verdade, nunca é. Agarrei o facão que sempre me acompanha. Já está um pouco enferrujado e sem fio, mas não quero me livrar dele, já até dei um nome se chama mordida. Bom, não é hora de pensar neste tipo de coisa.

     Coloco a cabeça para fora da caverna afim de ver se já havia escurecido o bastante. A lua brilha acima de mim, é uma hora perfeita para agir, a chance de verem as manchas nas minhas vestes é pequena.

     Dou uma cambalhota para fora do buraco e levanto com um pulo. Sigo pelas rochas em direção ao vilarejo em frente. Não há resquícios de pessoas andando a esta hora então sigo em frente exibindo a lamina para a lua.

     Chegando ao destino, ouço o bebê chorar e sua mãe o acalmar. O som provinha do conjunto aleatório de tábuas de madeira que formavam um abrigo, a escuridão é perfeita para uma entrada dramática.

     Aguardo a doce voz acalmar a criança até que durma, quero deixar que a última lembrança do recém-nascido seja algo bom e reconfortante. Aproveito para deixar que aquela voz me acalme também.

     A choradeira cessou, está na hora. Saltito até a estrada do abrigo, tento fazer o máximo de silêncio possível. Paro na porta, não vejo nenhuma silhueta humana lá dentro mas consigo ouvir a respiração da mulher que certamente me notou, sou agora uma mancha escura em frente à lua segurando um facão.

— Quem é você? — Perguntou a mulher, o medo era perceptível em sua voz. O silêncio é tentador, mas eu a respondo com a voz calma:

— Vim salvar você e seu filho.

— O que uma criança fará por mim e meu filho? — Poderia ter misericórdia dela se não tivesse dito essa palavra, odeio profundamente quando me chamam de criança, ela verá que apesar de eu ter apenas dez anos, sou capaz de mais do que ela foi em sua vida inteira, uma vida que não passará desta linda noite, olho para o céu afim de observar a lua, seria uma noite perfeita se fosse possível manchar o céu com o sangue de minhas vítimas, aperto o cabo de mordida, o sangue agora fervilha de raiva.

     Me aproximo da mulher que desesperada levantou rápida e correu em fuga, mas foi impedida quando deixei meu facão morder a batata de sua perna. Esperei até que ela se arrastasse para a luz do luar, onde as coisas ficariam mais fáceis. A mulher se roçou no chão com o filho nos braços para fora do beco, deixou um rastro horrendo de sangue que não parava de jorrar daquele ferimento na perna, minha intenção era decepa-la, mas mordida já não corta carne tão bem quanto antes.

     Chegou a minha hora, ando até ela sem demonstrar emoções, paro na frente dela para ouvir seus pedidos por socorro mais de perto, isso está me irritando, essa voz grasnando na minha cabeça, tenho de acabar logo com isso.

— Por favor... por favor... — implorou a mulher olhando para mim com lágrimas nos olhos e uma expressão horrível de dor.

— Espero que você e seu filho encontrem o caminho para Inferno o mais breve possível.  — Retiro com calma o bebê dos braços da mulher, ela clama por misericórdia, algo que eu já não posso ceder, afinal seu filho precisará de ajuda no caminho tortuoso do outro lado.

     Deposito a criança, que está encoberta em um manto branco, no chão gélido e arenoso, aprecio seu rosto rechonchudo e pacífico, parece estar sonhando com algo alegre, talvez uma infância melhor do que ele realmente teria. Suas bochechas eram uma gracinha, dá vontade de apertá-las, mas eu não posso demonstrar fraqueza, não agora. Dou um sorriso diabólico, tento mostrar que não me importo. Desembalo a criança do manto.

— Que as estrelas me perdoem — Suplico aos céus. Ergo mordida para o alto e decepo a cabeça da criança com dois movimentos rápidos, já que não amolava o facão fazia tempo, senti os respingos daquele vermelho puro nas bochechas. Sangue jorrou sem parar, isso é - de certa forma - divertido, é como estar saboreando minha comida predileta.

     Levanto ainda observando o sangue se espalhar pela rua. O manto, que outrora ostentava um branco limpo como uma estrela, se manchou aos poucos com o vermelho do... Assassinato? Não, o vermelho da misericórdia, a misericórdia de não deixar essas crianças passarem pelo mesmo que eu.

     Vou até a mulher que encharcou suas vestes com lágrimas, ela já não resistiu mais, sua vida já não lhe importa, afinal morreria em poucos dias quando a ferida de sua perna ulcerar.

— Espero que tenha uma viagem pacífica. — Ela ergueu o olhar sem esperanças para mim. Dou um sorriso, sinto que estou fazendo a coisa certa. Empurro seu queixo para traz deixando o pescoço a mostra. Passo o facão em sua garganta, com dificuldade pela falta de fio, enquanto apreciava o líquido vermelho em sua plena liberdade.

     Me afasto dos corpos, mãe e filho. É uma imagem bonita, mais uma para a minha coleção, a rocha cinzenta manchada de vermelho, dois corpos que o vilarejo noticiará que foram violados cruelmente. Cruelmente? Bobagem, eles não entendem a beleza de meus atos, não entendem o bem que estou fazendo às crianças, eles não me entendem e nunca conseguirão entender, eles só se importam com o próprio ego e é por isso que estou assim hoje. Me retiro do local, amanhã será um dia longo em Cacoral, talvez consiga ouvir os rumores que surgirão em torno da minha arte, mas o mais importante, preciso decidir quem será minha próxima vítima.

Inspirada na nossa sociedade, que abandona os iguais às migalhas. Amélia veio para mostrar que, o que vem de baixo atinge.

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Música: Arctic

De: Sleeping At Last

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O Manipulador De Estrelas: Quando As Estrelas ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora