A Estrela dos Olhos Brilhantes

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Artur

     Não é apenas sobre encontrar almas perdidas, na verdade é sobre dar a elas uma nova chance, uma esperança, é sobre encontrar um pouco de mim em cada uma delas. Entendo a essência de uma vida inteira como uma nova peça ao quebra-cabeça que se mostra esse mundo. É assim que eles vêm, aguados pela luz da esperança, se apossam desse corpo fazendo os milhares de células de repente redescobrirem sinais de vida. E aqui está mais um.

— Não me sentia tão aflito desde outrora quando meu navio afundava com toda a mercadoria, eu havia me salvado e estava em mar aberto, pronto para ser capturado pela frota de Berto, naquele momento, e apenas naquele momento, a aflição do sequestro tomou conta de mim e todo o peso da mercadoria perdida caiu em meus ombros, gosto de pensar que foi de tal peso a causa do afogamento, e também de tal peso que me afoguei nesse corpo suplicando por ajuda — disse através dos meus lábios. Me dei conta do quanto eles gostam, todos eles, contar sobre como morreram, compartilhar com alguém a angústia de não poder viver nem sequer mais um minuto, no entanto, acho fascinante descobrir os limites do corpo humano, além de deixar nosso trabalho menos complicado.

     Aquela presença dentro de mim despertava um odor de maresia, sinto a ondulação pelo pescoço, sinto algo estranho, ele não relutou, me parece que apenas aceitou a morte. Estou afundando e essa é a melhor parte, os sabores que tocam meu paladar, os sons vibrando em minha audição, as temperaturas arrepiando até os menores pelos em minha pele e a olência atiçando meu olfato. Uma intensidade quase real de sentidos, e é assim que encontro a mim e ao mundo através dos mortos.

     Este caso quase me fez rir quando entendi que se tratava de um marinheiro perdido, afinal um navegador precisa saber para que ponto cardial está apontando. Muito embora não temos conhecimento do funcionamento das direções do outro lado, talvez ele não esteja perdido por falta de direcionamento e sim por não reconhecer o modo como morreu.

— Você está em Aurum caro marinheiro, aqui é onde transformaremos o peso em seus ombros numa bússola. O caminho até Inferno costuma ser revelado quando você reconhece a forma como morreu. Levanto uma questão, como a vida foi lhe tirada? — respondo após um tempo analisando essa estranha situação.

— Fui arrebatado da vida pelas malditas águas por onde naveguei. Não é mistério que o mar se lembra daqueles que com pés sujos pisoteiam as ondas.  — Ouço a resposta com atenção, leva um certo tempo até que a ligação entre guia e entidade se torne forte o suficiente para que os sentidos aflorem na pele.

— Me diga marinheiro, qual o seu tipo de rum preferido?

— Laranjas ao Rum, lembro-me de sempre ter ao meu lado um barril ou dois entre as viagens. — E ali está. Sinto uma explosão de sentidos na pele, consigo sentir o hálito carregado em álcool, provavelmente após esvaziar tais barris. Que as cinzas desta explosão me tragam a resposta.

— Meu amigo, não só ouço o som de ondas se estapeando como também ouço o zunido de uma flecha. Sua morte está suja de sangue, sim eu sinto, antes o que me parecia a ondulação das águas no pescoço, agora, se torna o desejo por liberdade do líquido naquelas veias.

— Berto! — urrou, sinto as palavras atoladas em raiva — amaldiçoado seja esse nome. Amaldiçoado seja seus pés e que as águas se lembrem de Berto, o homem que lustrou os sapatos com meu sangue.

— Que seu caminho seja iluminado pelas estrelas, como é seu nome? — Silêncio... ele se foi, é difícil conseguir confiança suficiente para obter nomes dos que vêm, afinal um nome pode ser amaldiçoado como acaba de acontecer, e a última coisa que queremos após nos livrarmos de um peso, é senti-lo novamente. Me levanto devagar para não bater a cabeça, abaixo um pouco a mão de encontro à almofada, a pego quando sinto o tecido. Tateio a madeira da árvore em busca da saída, e lá está. Com a ajuda do tato saio de dentro da árvore e sigo o som de serpentear do rio.

Carregando o elã de uma alma sorridente, Ana Vitoria Amorim, que me desnudou sobre os princípios de uma fé, dedico este conto a ela. Obrigado por ser o sorriso mais surpreendente do meu convívio. Estimulado pelos encantos das religiões afro-brasileiras, Artur vem para representar a magnificência da devoção, para mostrar que não é preciso ver para crer, podemos sentir a serenidade no interior de nossos corações.

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Música: Hearing

De: Sleeping At Last

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O Manipulador De Estrelas: Quando As Estrelas ContamOnde histórias criam vida. Descubra agora