Prólogo

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A chuva parecia aumentar a cada passo que ele dava. A respiração ofegante de cada um dos caçadores parecia penetrar por sua pele, fazendo seu corpo tremer e querer fraquejar. Mas ele não podia se dar ao luxo de ser pego, não depois de tantos sacrifícios que já haviam sido feitos para que chegasse àquele ponto do caminho. Não. Teria de encontrar uma maneira de despistar os caçadores e completar a missão que recebera de Luvix, o velho feiticeiro que morrera minutos antes enquanto abria espaço para que ele fugisse em segurança.

"Você não morreu em vão, meu velho..."  O rapaz pensou enquanto se escondia atrás de um tronco grosso que caíra segundos antes, atingido por um dos raios que rasgavam o céu negro.

De repente, um dos caçadores pareceu se materializar à sua frente. Gael mal teve tempo para pensar, antes de se jogar para o lado e murmurar:

- Ignoto! - Ordenou e, no mesmo instante, seu corpo foi coberto por chamas negras, frias. Ao mesmo instante em que sentiu, bem na altura de sua orelha, um tinido metálico penetrar o tronco de carvalho e, em seguida, consumi-lo em chamas verdes.

O jovem mago sabia perfeitamente que apenas um feitiço de invisibilidade não bastaria como proteção contra as mortíferas chamas-esmeralda dos caçadores. Ele pôde ver, com um aperto agudo no peito, quando Luvix fora incendiado por tais chamas. Desejou ter sido corajoso o suficiente para ignorar as ordens de seu Mestre e ir de encontro a ajudá-lo, mas não o fez. O velho fora bem claro em suas ordens: Ele deveria escapar em segurança, completar sua missão e jamais se lamentar por ter seguido ordens. Ainda assim se sentia um covarde. O ódio que latejava em sua mente dizia para ele não ter pena dos caçadores.

"Mate-os! Mate-os!" ele pensava repetidas vezes. "Mate-os ou eles o farão!"

Mas Gael não podia ceder aos seus pensamentos, nem se realmente quisesse. Matar não era de sua índole e, ele sabia, que matar aqueles homens só dificultaria ainda mais a vida de pessoas como ele, dotadas de magia. Matar um caçador de bruxas, nessa altura do campeonato, seria uma declaração de guerra. E era essa guerra que os nascidos com o dom da magia tentavam evitar.

- Estamos em maior número, - o caçador que encontrara o mago gritou, puxando a lança imbuída de chamas-esmeralda que ficara presa à árvore, onde segundos antes Gael se encontrava. - não há como fugir!

Gael se esgueirava pelo chão coberto de folhas, tentando causar o mínimo de farfalhar ao se deslocar. O barulho forte da chuva e do vento nas árvores ajudava a camuflar sua respiração e os eventuais galhos que vinham a se partir por onde ele passava.

Um grupo de três caçadores se aproximou do primeiro, que parecia ser o Comandante da Caçada. Agora que estavam parados, Gael pôde ver que todos usavam um manto negro, com um longo capuz encobrindo suas cabeças. Todos empunhavam uma lança ou uma espada imbuída com chama-esmeralda, na mão direita. Na esquerda, tochas com a mesma chama. Gael e todos os demais magos temiam-na, pois fora criada, através de Alquimia, para queimar a mana no corpo dos portadores de magia, transformando seus corpos em pó.

- Sir Bravos, - um deles começou, abaixando a cabeça e pedindo autorização para falar. Ao receber a aprovação, continuou. - o rapaz está ferido. Não vai conseguir ir longe. A chuva aumenta a cada minuto... E os relâmpagos ficam cada vez mais violentos...

Sir Bravos levantou o capuz e fitou o homem com uma expressão de desprezo em seu rosto. Algumas cicatrizes se revelaram, quando um relâmpago iluminou seu rosto por alguns milésimos.

- Está sugerindo que encerremos as buscas, Santiago? - Sir Bravos perguntou, caminhando em direção a Santiago e apertando-lhe a garganta.

Santiago, por sua vez, apenas gemeu. Nem sequer tentou escapar das mãos do agressor.

- Esqueceu do que essas criaturas são capazes? - Disse. E sua voz era uma mistura de raiva, dor e mansidão. Ao terminar de falar, inclinou a cabeça para trás, ainda apertando a garganta de Santiago. - Eu não.

Gael ficou estático quando os relâmpagos iluminaram o rosto de Sir Bravos e revelaram que o homem não possuía o olho esquerdo. No lugar, um tapa olhos de bronze parecia conter algum tipo de chama escarlate. Escarlate! Era disso que ele, Gael, precisava: Enxergar perfeitamente no escuro. Por algum motivo que ele desconhecia, Sir Bravos não estava utilizando seus Olhos Escarlates. Isso permitiria que ele o encontrasse tão facilmente quanto se encontra água no mar. Gael sentiu um alívio, ao mesmo tempo em que seus pelos se arrepiaram. Decidiu que não estava utilizando todo o conhecimento adquirido ao longo de dez anos na Academia de Vitorégia. Logo tratou de se afastar mais dos caçadores e tirou das vestes negras um toco de vela vermelha.

"Espero que acenda na chuva" Ele pensou, enquanto colocava o toco da vela próximo a um arbusto e acendia com um estalar de dedos.

E isso foi o suficiente para que Sir Bravos soltasse Santiago e virasse seus olhos, com o esquerdo ainda protegido pelo item de bronze, para onde Gael estava. O encantamento de Ignoto se esvaiu e, ainda que não estivesse usando seu olho mágico, Sir Bravo pôde ver, claramente, a figura de vestes negras próximo à uma vela vermelha. Ao perceber a intenção do mago, Sir Bravos armou sua lança e a atirou contra o jovem. Felizmente Gael já possuía olhos tão vermelhos e luminosos quanto a chama da vela que acendera, e se esquivou da flecha numa agilidade impressionante.

Sir Bravos deu um grito furioso e acenou para que os outros caçadores fossem em direção ao rapaz. Gael encarou-os com aqueles olhos flamejantes, apontou algo que mais parecia um graveto molhado e murmurou algo tão baixo que nem ele poderia ter entendido. Nesse instante, uma força invisível, tão forte quanto o vento e a chuva, fez com que todos os homens, incluindo Sir Bravos, voassem para trás. O mago guardou o graveto nas vestes e começou a correr, correr com todas as forças que lhe restavam.

Seu caminho estava tão claro que ele desejou ter óculos escuros. Em alguns momentos, quando o clarão dos relâmpagos cobriam parte da floresta, era como se ele estivesse olhando diretamente para o sol. Até mesmo pequenos vaga-lumes emitiam um clarão cegante. Seus olhos já estavam começando a lacrimejar, pois nunca havia se acostumado a utilizar as habilidades oculares com frequência. Era como se tivesse colocado lentes de contato pela primeira vez e, com os olhos desacostumados, surgisse a irritação. Mas tinha que se apressar, não podia se dar ao luxo de fechar os olhos nem por um segundo. Os caçadores estavam na sua cola, logo encontrariam a vela vermelha e, em seguida, após destruí-la, seus olhos escarlates iriam embora... Bem como sua única chance de escapar.

"Só preciso aguentar por mais alguns minutos" Pensou, enquanto pulava enormes raízes e desviava de galhos quebrados, troncos e todo o tipo de obstáculo indesejável.

Gael precisava apenas de tempo o suficiente para conjurar o feitiço de teletransporte. Se sentia um idiota agora, por nunca ter dado a devida atenção às aulas de projeção astral. Isso facilitaria - e muito - a sua fuga. Mas, como era um idiota, teria de se contentar com o feitiço manual e, para isso,precisaria se distanciar bastante para que tivesse tempo de armar todo o ritual.

Arthur Espinel - O Livro das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora