A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA

261 24 22
                                    

É UM FATO UNIVERSALMENTE RECONHECIDO QUE VOCÊ vai se apaixonar! Se será correspondido, se você vai ou não se machucar ai já são outros quinhentos, mas é certo que mais cedo ou mais tarde acontecerá com você.
Lembro-me da primeira vez em que me aconteceu, eu não passava de um garotinho. Ela se chamava Eloar, ou Lola para os mais próximos, se mudou para a casa ao lado da minha no verão do meu nono aniversário.
Antes da pequena Lola com seus tênis roxos e sua mania de explorar chegar a minha vida, eu era um garoto de nove anos quase completos que passava a maior parte do seu tempo no quarto lendo HQs e assistindo Animes. Então, em uma tarde de junho o caminhão de mudança estacionou na casa ao lado, debruçado no parapeito da janela eu observava as pessoas indo e vindo com caixas de todos os tamanhos.
Curioso sobre os novos vizinhos e torcendo para que eles tivessem um filho que também gostasse de Dragon Ball e concordasse comigo que, sim, o Goku não era melhor que o Vegeta, pedi a minha mãe para ir até lá.
"Não, Felipe. Eles devem estar ocupados desempacotando as coisas, mais tarde vamos lá dar as boas vindas." disse ela.
"Por favor mãe." insisti, fazendo minha melhor carinha de cachorro manco que caiu do caminhão de mudança. "Por favorzinho." supliquei. Com um suspiro ligeiramente exasperado seguido de um meneio de cabeça, ela me autorizou. O pequeno eu de oito anos saiu de casa quase saltitando, eu sentia no meu âmago que os novos vizinhos tinham um filho da minha idade cuja a alma e os interesses seriam compatíveis com tudo o que sempre quis em um melhor amigo. Seríamos como Batman e Robin, Harry e Ronnie, Naruto e Sasuske, uma dupla de guerreiros jedi lutando contra o Império de valentões nos corredores galácticos do fundamental. Seria incrível! Seria Épico! Seria Fantástico! Eu estava completamente iludido nesse meu devaneio infantil.
E a realidade dura me atingiu como um brilho vermelho em um mar de concreto cinza.
Na calçada, com cara de brava e os braços cruzados estava uma garotinha, seu cabelo avermelhado brilhava sob o sol e foi essa mesma luz solar que vi refletir em seus olhos como em um caleidoscópio. Seria poético se eu dissesse que me apaixonei por ela nesse momento, não é? E acredite, eu gostaria de poder dizer isso. Mas é como dizem os mais sábios: amor verdadeiro se constrói com a convivência. E naquele momento, parado sob um sol escaldante, tudo o que eu sentia por aquela garota - que me encarava com curiosidade e talvez receio, era uma coisa bem semelhante a decepção misturada com frustração, afinal ela havia acabado de destruir todos os meus, breves porém já épicos, planos de aventuras masculinas ao lado do melhor amigo perfeito. Mas nem tudo estava perdido, sempre fui um garoto esperançoso - ou teimoso, se preferir - eu tinha uma minúscula fagulha de esperança de que ela tivesse um irmão, ao qual me agarrei pelos próximos quarenta minutos que se seguiram.

Com os olhos semicerrados e o suor umedecendo minha testa, observei caixas e mais caixas serem retiradas do caminhão e levadas para dentro da casa verde com persianas azuis (o que devo dizer que era uma combinação horrorosa), esperei ansioso que o meu futuro melhor amigo descesse do caminhão ou do Honda prata estacionada poucos metros a frente.
Quando um homem ruivo e tão alto quanto o meu pai, pegou a mão da garota e a levou para dentro junto com a última caixa, aquela minha fagulha de esperança se apagou como a chama de uma vela esquecida na chuva.
Marchei para casa, me sentindo totalmente frustrado. Logo de cara me deparei com a minha mãe e uma lista mental de perguntas sobre os novos vizinhos para as quais eu não tinha respostas. "Eles tem uma filha." me limitei a dizer, antes de subir as escadas e voltar para minha diversão solitária regada a suco industrializado de uva.

☀☀☀

No fim da tarde, como minha mãe havia dito que faria, fomos a casa dos vizinhos, dar as boas vindas e toda essa baboseira. Eu não queria ir, estava na metade da minha HQ favorita do Incrível Homem-Aranha, a melhor distração que eu poderia ter para esquecer a minha frustração de horas antes. Até minha mãe me interromper, com um sorriso no rosto e um bolo de fubá em mãos.
"Vamos? Você ainda quer dar boas vindas a eles?"
"Não." respondi, logo voltando minha atenção para a revistinha.
"Por que não? Não era você que estava doido para ir lá?"
"Era, mas não quero mais, mãe. Estou lendo" balancei a HQ no ar. Ela me encarava, uma sobrancelha arqueada em uma expressão clara de desconfiança, eu já sabia a pergunta que viria a seguir: o que houve, Felipe?
"O que houve, Felipe?" ela sentou-se na cama, ainda me olhando.
"Nada. Eu só não acho que eles são tão legais quanto achei que seriam."
"Não seja bobo, você nem os conhece, levanta daí. Vamos!"
"Mas mãe, eu..."
"Mas mãe nada, vamos!"
E fui, que outra opção me restava? Segundo meu pai, eu já era um homenzinho, estava crescido demais para fazer birra. Mas bem que tive vontade de me agarrar aos lençóis da cama e espernear até ela desistir de me fazer ir até lá.
Foi naquela tarde que falei com Lola pela primeira vez. Depois que minha mãe falou para os vizinhos sobre quão maravilhosa e tranquila era nossa vizinhança, "o lugar perfeito para uma criança crescer" dizia ela "correndo na rua, se divertindo." continuava. Até parecia que eu, a única criança ali presente até então, corria na rua, e foi no meio desse discurso da minha mãe que Lola entrou na sala. Segurando um grande e feioso sapo de pelúcia e usando seus tênis roxos que, eu descobriria mais tarde, eram sua marca registrada.
"Essa é a Lola, nossa filha." disse o homem que vi horas antes levar a garota, a última caixa e a minha esperança para dentro daquela casa e agora eu já sabia que se chamava Alfredo.
"Cumprimente nossos vizinhos, Lola."
"Oi." disse ela, sua voz era doce como jujubas vermelhas e melódica como sinos de natal. Eu gostei e me senti estranho por isso. "Oi." falei de volta. Ela sorriu. Eu sorri. Nem sabia que minha vida estava prestes a mudar para sempre.
Sentados no sofá, ela estava ao meu lado, vez ou outra nos olhávamos com uma curiosidade timidamente infantil, enquanto comíamos do bolo da minha mãe e os adultos conversavam.
"Por que um sapo?" perguntei em determinado momento. Ok, eu admito que não era muito bom em começar conversas com garotas... tá, nada bom. Mas, em minha defesa, na época me pareceu uma pergunta plausível, afinal com tantas opções de animais de pelúcia no mundo por que alguém iria querer um sapo rosa e verde tão horrível?
"Gosto dele." respondeu Lola, me olhando como se dissesse: não é obvio?
"Ele se chama Cronos, é o nome de um deus grego." disse ela, parecendo orgulhosa do seu falso conhecimento de mitologia grega. Cronos, na verdade, era um Titã, mas preferi não contrariar pois segundo meu pai -,que era o motivo de eu ter um conhecimento razoável de mitologia já que ele era professor de história, não era bom contrariar as mulheres. E ele sabia do que falava, eu já o tinha visto contrariando a minha mãe, nunca era bom para ele.
"Legal." me limitei a dizer, antes de levar o garfo a boca com mais um pedaço de bolo. A observei em silêncio, abraçada ao Cronos-Sapo-Feio e comendo bolo, então pensei: por que não uma melhor amiga?
Okay, ela era uma garota que não parecia saber muito bem do que falava quando o assunto era mitologia, amante de sapos e não era um garoto com quem eu poderia travar batalhas épicas contra o Duende Verde, mas, ainda assim, algo nela me chamava atenção. Talvez fossem os olhos como o caleidoscópio que a professora Lúcia me ensinou a fazer na primeira série, ou talvez fosse aquela coisa que eu senti quando ela olhou para mim e sorriu enquanto eu a encarava sem nem perceber e disse: "Você é engraçado, Lipe." Ela me conhecia a menos de uma hora e já me chamava de Lipe e estava sorrindo para mim, era um sinal de que sim, tínhamos que ser melhores amigos.

DELUSIONAL Onde histórias criam vida. Descubra agora