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Roupas. Sapatos. Objetos de higiene pessoal. Acessórios. Maquiagem. Toalha. Repelente. Protetor solar. Isqueiro. Documentos. Dinheiro. Livro sobre como sobreviver a um acampamento. Livro preferido. Óculos de sol. Ingressos para o acampamento Wild Lake. Eu repassava mentalmente tudo que estava em minha bagagem pela centésima vez, tentando focar em algo que não fosse o sacolejar irritante que o avião fazia enquanto pousava. Sim, eu odiava aviões, mas odiava ainda mais aviões pousando.

Soltei um suspiro aliviado assim que coloquei os pés em terra firme e ouvi Amberle prender o riso ao meu lado, enquanto caminhávamos pelo saguão do aeroporto minúsculo e esquecido literalmente no meio do nada na cidade de Valeyhills.

― Acho que já passou da hora de você superar esse medo de aviões ― Amberle falou sorridente, balançando os cabelos longos e ruivos e chamando a atenção de alguns homens que passavam por nós. Nenhuma novidade até aí.

― Não, eu não preciso. Carros, ônibus, trens e navios existem por uma única razão: para que eu não precise viajar dentro de uma máquina mortífera de ferro que voa e desafia as leis da física, muito obrigada ― Respondi prontamente, vendo Ambee gargalhar e agitar a cabeça em negação.

Apesar de estarmos em uma cidade montanhosa, estávamos no verão e a sensação térmica podia ser facilmente resumida em: saindo de um ar condicionado delicioso e adentrando diretamente nas profundezas do inferno, mais especificamente falando, na saúna de Lúcifer. Um bafo quente e seco se estendeu por minha pele e me obrigou a retirar meu moletom, amarrando-o em minha cintura enquanto caminhávamos em direção ao único setor de esteiras que havia no pequeno aeroporto.

Amberle sorria divertida e tagarelava como sempre, relembrando todos os planos que havíamos feito para passarmos nossa semana de férias. Estávamos rindo de alguma coisa sem importância quando senti algo bloquear minha passagem e logo meu corpo estava se chocando contra algo grande e ridiculamente forte. Antes que tivesse tempo de erguer o olhar para descobrir quem havia resolvido que seria uma boa ideia se materializar em minha frente sem aviso prévio, senti, no instante seguinte, um líquido extremamente gelado atingindo e manchando minha camisa branca, me fazendo tremer. Merda! Mas que porra é essa?

― Mas que porr... ― Comecei a falar mas me calei assim que meu olhar furioso se deparou com um par de íris azuladas que me fitavam em pânico.

Não precisei olhar para o lado para saber que Amberle provavelmente estava de boca aberta, tentando impedir que a baba escorresse. O homem de cabelos dourados e presos em um coque mal feito me encarava com olhos apreensivos e um misto de surpresa e vergonha estampado em seu rosto bronzeado e parcialmente coberto pela barba por fazer. Suas íris azuis escuras combinavam perfeitamente com a camisa jeans que ele vestia por cima de uma camisa branca. Ele se parecia com um Deus Viking que havia saído diretamente da mitologia nórdica com a única função de arruinar a vida das pessoas que cruzassem seu caminho. Precisei de alguns segundos para me recuperar e lembrar que, por mais que o homem fosse um modelo de catálogos em carne em osso, ele havia arruinado minha camisa.

― Desculpa, eu não... ― Ele começou a se desculpar e puta que o pariu, eu queria aquela voz rouca e grossa sussurrando sacanagens no meu ouvido e... Daisy. Não.

― Você não se dá ao trabalho de olhar por onde anda?! ― Exclamei, um pouco mais alto do que o necessário, vendo alguns rostos se voltarem em minha direção. O loiro tentou voltar a falar mas fui mais rápida ― Olha a merda que você fez ― Reclamei, tentando inutilmente desgrudar o tecido molhado de meu corpo. Meu sutiã azul começava a se tornar ridiculamente evidente, e a minha vontade de xingar o cara e sua beleza ridícula só aumentava.

Seu olhar assustado pareceu escurar e sua expressão calma deu lugar a uma fúria gritante, ao mesmo tempo em que ele parecia ficar ainda mais alto, tornando-se gigante diante de mim. Dei um passo curto para trás, precisando inclinar o pescoço para fitar seus olhos semicerrados.

― A culpa é sua que resolveu entrar na minha frente e cruzar meu caminho, garota! ― Ele esbravejou, chamando ainda mais atenção para nós dois. Ótimo, porque tudo que eu queria era que todos prestassem atenção em minha camisa molhada e transparente, é claro. O desgraçado ainda olhou para o copo vazio em suas mãos e balançou a cabeça negativamente, claramente decepcionado por ter derramado sua bebida ― Acabei de jogar fora cinco dólares, você quem deveria estar me pedindo desculpas.

― Você só pode estar brincando comigo ― Senti meu sangue ferver e, sem pensar, avancei em sua direção. Estava a centímetros de seu corpo quando senti as mãos quentes de Amberle envolverem meus braços, me afastando e me segurando com força. Deus, eu queria esganar o desgraçado.

― É, sua amiguinha precisa de alguém que a controle mesmo ― Disse ele, e por um segundo a carranca em seu rosto deu lugar a um sorrisinho inclinado e sedutor, e sua frase pareceu completamente errada e distorcida em minha mente. Idiota. 

― Deixa isso pra lá, Isy ― Ambee pediu, me puxando para longe do loiro que resolveu se afastar, sem olhar para trás ― Não consigo entender você, sabia? Um homem maravilhoso desses e ao invés de se aproveitar da situação você resolve bancar a louca.

― Você viu o que ele fez?! ― Apontei para minha camisa, respirando fundo e tentando me acalmar ― Além disso, você me conhece, eu não lido bem com caras que passaram três vezes na fila da beleza, Ambee.

― Você é um caso perdido, Daisy Vandlex.

Amberle começou a despejar uma enxurrada de comentários sobre a beleza anormal do cara para cima de mim e, quanto mais ela falava, mais eu tinha certeza de que se ele aparecesse em minha frente novamente eu acabaria avançando em sua direção com unhas e dentes. Por algum motivo minha mente divagou e fez uma imagem completamente errada disso, o que só serviu para me deixar ainda mais irritada. E daí que ele era um Deus Viking? Eu era adulta o suficiente para controlar meus hormônios.

Resolvi que seria melhor pedir para que Amberle fosse buscar minha mala e corri até o banheiro mais próximo para tentar limpar a bagunça que o sujeito estranho havia causado. Falhei miseravelmente. Depois de passar alguns minutos com a camisa esticada embaixo do secador de mãos, me dei por vencida e resolvi que seria melhor ir logo para o acampamento para tomar um banho e trocar de roupa.

Encontrei Amberle me esperando do lado de fora, com nossas malas em mãos e um sorriso gigantesco estampando seu rosto. Nem mesmo minha minha cara fechada quando me aproximei foi capaz de fazer com que o ânimo de Ambee diminuísse. Seguimos para o lado de fora do aeroporto e logo encontramos uma kombi metade branco metade verde-água estacionada na área de desembarque. O nome 'Wild Lake' havia sido escrito em um tom chamativo de rosa na lataria, e havia uma porção de flores desenhadas ao seu redor. O carro parecia ser mais antigo que eu e Amberle juntas, e por alguns segundos eu cheguei a considerar que seria mais seguro passar a semana viajando de avião do que andar naquela kombi antiga.

― Ok, presta atenção em mim ― Amberle parou e segurou minhas mãos nas suas, me obrigando a encará-la antes que seguíssemos em direção à kombi que nos aguardava ― Você sabe quantas vezes eu já fui sorteada e ganhei algo? Nunca, nunquinha. Nem mesmo brindes de 1,99 nos bingos da igreja.

― Ambee, fui eu quem ganhei o sorteio ― Lembrei ela, vendo-a espanar o ar com a mão e dar de ombros, como se a informação não fosse importante.

― O que importa é que estamos indo pra esse acampamento maravilhoso de graça, então estamos no lucro, entendeu? E se você não melhorar essa cara e aproveitar essa semana direito, eu juro que vou te amaldiçoar para que você nunca mais ganhe nada, e toda sua sorte passe pra mim, estamos entendidas?

Amberle terminou seu discurso e continuou me fitando duramente. Seus olhos verdes brilhavam ansiosos e seus lábios pintados de vermelho continuavam espremidos em uma linha fina enquanto ela esperava por minha resposta. Suspirei, deixando que sua animação me contaminasse e esbocei um sorriso que pareceu ser o suficiente para convencê-la.

― Você tem razão ― Respondi, sentindo o sol em minha pele e aspirando o ar puro das montanhas com força, sentindo meus pulmões acostumados à poluição me agradecerem ― Estamos aqui de graça, e estamos de férias. Isso ― Disse, apontando para minha camisa ― foi apenas um incidente isolado, e daqui pra frente tudo vai dar certo! ― Falei mais para mim mesma do que para Ambee, tentando me convencer de que o universo resolveria conspirar.

Ah. Maldito universo.

Wild LakeOnde histórias criam vida. Descubra agora