Prólogo

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Certa noite perguntei à minha mãe sobre o assunto, o qual já nem me lembro qual. Ela sorriu e vi apenas o sorriso de seu rosto embaçado, não consegui ouvir o que disse, não saberia dizer se saiu algo de sua boca, meus olhos pesaram e ela se foi, sem me dar nenhuma resposta. No dia seguinte, minha família jazia morta na sala, meus pais sentados ao sofá. Meu avô a poltrona, meus dois irmãos no chão, deitados por sobre os pés de meus pais. Ouvi o choro de meu irmão mais novo, subi a escada às pressas, o olhei no seu berço azul. Indefeso, sozinho e inocente.

Uma criança sem ninguém, apenas eu.

Minhas lagrimas caíram antes que eu tivesse coragem de pegá-lo, eu quase não o alcançava atrás do berço, enfiei minhas mãos entre as aberturas e peguei na pequena dele. Não vi quando Lucy chegou, mas ela me agarrava e chorava desesperadamente. Clamando por nossos pais. Prometi a mim mesma que choraria apenas dessa vez e que protegeria meus irmãos com minha vida. Eu fui apresentada muito cedo a crueldade do mundo. Eu tinha apenas oito anos.

Meus pulmões buscaram desesperadamente ar, concedendo seu pedido finalmente consegui voltar a respirar, me sentei na cama, minha cabeça ainda latejava, mas ignorei a dor, me concentrando apenas em esquecer os corpos da minha família. Em breve iria fazer dez anos da morte deles, tornando os pesadelos mais constantes, mais um lembrete de culpa para minhas costas aguentarem.

Ergui minha mão para abrir a cortina, foi só ai que percebi que ainda tremia, gotículas de suor passeavam pelo meu corpo, minha camisa estava molhada, meu cabelo grudava no meu rosto. O sol lá fora logo alcançaria seu auge, olhei em volta, a pequena luz que passava por entre as cortinas iluminava o recanto, abri a janela, deixando que ar entrasse naquele cômodo abafado, me apoiei no parapeito, encarando a vasta floresta bem em minha frente, respirei fundo, deixando que o cheiro de terra molhada invadisse minhas narinas, então entrei novamente. Eu estava dormindo no quarto antigo de meu irmão Rafa, imaginei que após dez anos, ainda teria o cheiro de seu aconchego, não tinha. O cheiro de mofo era o que predominava no quarto, tinha alguns locais do quarto com poeira, como nossa foto em cima da mesa dele, estávamos eu, ele e Théo, na foto meu rosto era o único que não estava totalmente apagado pelo tempo, o que se tornava a merda de uma coincidência, talvez se eu limpasse os rostos deles aparecessem, mas eu não queria, não queria ver o sorriso frágil e inocente deles.

O único odor que restava na casa era sangue seco — que mesmo após horas tentando limpar, o cheiro não saía —, mofo e as lágrimas constantes de uma pessoa morta. Foi mais difícil do que eu pensei entrar na casa após dez anos. O tapete não estava mais lá, tampouco o sofá, deviam ter levado para uma investigação, onde devem ter encontrado por coincidência somente pelos de lobos.

Achei que poderia voltar e me sentar na poltrona de meu avô, para, talvez, matar a saudade que sentia deles, para inalar seu cheiro e conhecimentos que não foram adquiridos totalmente por uma criança de apenas 8 anos, achei que teria coragem de entrar no escritório de meu pai, passear com anseio pelos inúmeros livros que falei que ainda leria quando criança, seguindo cada ensinamento do meu pai. Mas as lágrimas entalaram na garganta e eu as engoli junto com a coragem. Meio a contragosto me levantei, indo para o banheiro. 

A água quente queimou minha pele, mas não liguei para dor, batendo fortemente contra a ferida aberta nas minhas costas, queria apenas apagar a amargura crescente em meu peito, queria que ela descesse pelo ralo assim como a água. Era difícil, quando tudo ao redor me lembrava deles, me lembrava que eu tinha vindo a esse cidade com o propósito de vingança, uma coisa tosca, se pensasse como minha mãe, mas eu não era ela, mesmo que nossas aparências fossem parecidas, eu nunca seria ela, seria sempre o monstro que minha vó criará no porão de sua casa, com o único propósito de matar.

Desliguei o chuveiro, pegando a toalha e me enrolando nela. Passei a mão pelo espelho, encarando meu reflexo, eu estava com grandes olheiras, meus olhos azuis estavam apagados, tornando-os quase cinzas. Imaginei quantas vezes meu irmão ficou se arrumando para impressionar a garota da escola, imaginei quantas vezes ficou ensaiando para dizer que gostava dela, imaginei que se ele chorou quando ela disse que não sentia o mesmo, seria no mesmo local onde eu estava parada.

Ao Lado Do Supremo (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora