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24 de dezembro 1820

O único barulho presente naquela casa, além dos ventos da nevasca e do rangir incansável dos móveis, era o cantarolar baixo e melancólico de uma velha, e sem graça, melodia de Natal.

Toda a estrutura de madeira do cômodo estava desgastada pelo tempo. Os livros da estante estavam corroídos pelas traças, e as portas estavam com as fechaduras enferrujadas. As janelas não possuíam trincas, por isso tremiam e batiam entre si levemente, era como se o vento estivesse pedindo para entrar.

A véspera de Natal reuniu a família, e quase todos estavam na sala. Sentados ao redor da lareira, trocavam poucas palavras, enquanto esticavam as pernas o mais próximo possível do fogo sem que alguma centelha pudessem acertar os pés com as meias encardidas.

Não havia ceia, nem mesmo um presépio. Apesar de sua mãe ser extremamente religiosa, não havia dinheiro sobrando para tal luxo. Para comer havia apenas pães e algumas nozes, mas ninguém ali parecia incomodado com isso. A neve caia serena do lado de fora, como se não ligasse para o forte impacto da ventania contra a mesma.

O caçula da família olhava para fora, enquanto fazia desenhos no vidro embaçado pela sua própria respiração. Esperava ansioso pela chegada do pai. O mais velho havia saído bem cedo para ir até o vilarejo, pretendia trocar um saco com sementes e nozes por alguma manta ou cobertor. Aquele era um dia muito frio, e só pioraria quando chegasse a madrugada.

Já passava da hora do patriarca chegar, por alguma razão, ele havia atrasado mais que o comum para voltar à casa. Atitude estranha, principalmente em noite de natal.

Alguns minutos depois, talvez horas, surgiram os primeiros indícios de movimentação entre as árvores e a presença de uma silhueta preta no meio da neve fofa. O garoto exclamou animado. Chamou atenção de todos na casa, sua mãe, irmã e primos, para a chegada do amado pai.

Porém uma coisa atraiu novamente o olhar do pequeno para fora, impedindo que ele continuasse seus festejos. A silhueta não estava sozinha, e logo duas, três, quatro novas pessoas se juntaram ao familiar. Mas quem eram aqueles homens que estavam vindo em direção à casa?

- Mamãe... Iremos receber visitas?- O garoto perguntou, sua voz tremia pelo frio e estava repleta de confusão.

- Visitas? Quem iria nos visitar à essa hora, você dev..- A fala rouca da mulher, que antes cantarolava, se cortou no meio. Isso atraiu a atenção do menino, que virou o rosto pálido em sua direção. Seguiu o olhar da matriarca e viu que ela também olhava pela janela, mas agora com uma expressão aflita no rosto.

Após isso, tudo foi uma questão de segundos.

Sua mãe, com uma expressão assustadora de desespero, se abaixou e começou a engatinhar por debaixo da visão da janela. O garoto ouviu-a gritar algumas coisas desconexas, algo como "se escondam", mas não teve tempo para raciocinar o que estava acontecendo. A mulher havia o puxado pelos braços, o arrastando até a divisa da sala com a cozinha.

Os dois se encolheram atrás da porta, a mãe segurando fortemente o menino em seu colo. Viu o rastro dos primos correndo em direções diferentes da casa, a procura de um esconderijo. Tudo estava tão confuso, porém o garoto sentiu medo de perguntar o que estava acontecendo.

O silêncio reinou. Estava tudo quieto. Quieto até demais. Ninguém se mexia, todos com a respiração presa involuntariamente. Seria possível ouvir até o barulho de uma agulha, se caísse no chão. Era a calmaria antes da tempestade.

Logo, todos na casa foram assustados com a porta sendo esmurrada com tudo, destruindo a guarnição da entrada. Gravetos e farpas voaram em todas as direções quando a madeira finalmente cedeu.

Jack Frost - Myg; KthOnde histórias criam vida. Descubra agora