A casa na Consolação

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                Eu possuía certo grau de mediunidade, sensibilidade, imaginação ou o que quer que você queira chamar. Meus sonhos acordados eram tenebrosos, meus sonhos dormidos muito realistas e convincentes, mas o principal é que eu via coisas. Eu não "via pessoas mortas", apenas coisas que, segundo a Ciência, não deveriam estar ali.

Tenho um primo que morava, com meus tios, em uma casa muito grande e antiga. Era um sobrado enorme no bairro paulistano da Consolação, com uma escadaria longa dando acesso à entrada, pisos de madeira, janelas que pareciam ter saído de um filme de terror (e isso não é minha imaginação, tenho fotos para provar o péssimo gosto dos meus tios na escolha por aquele imóvel) e tudo mais que precisa para dar errado.

Casas com piso de madeira naturalmente fazem vários barulhos, mas quem as conhece uma hora aprende a distinguir estalos e ruídos aleatórios de sons específicos causados por determinadas ações. Aconteciam coisas bizarras, como todo mundo estar no piso inferior e passos serem ouvidos no andar de cima. Luzes acendiam sozinhas em cômodos sem ninguém. Armários trancados se abrindo sozinhos. Respiração atrás da cortina do banheiro bem naquela hora que é complicado você levantar da privada e sair correndo. Muitas dessas coisas são questionáveis, certamente, mas a frequente ocorrência delas e a maneira que grande parte de meus familiares mantem as mesmas lembranças nítidas nos deu muito sobre o que pensar.

O episódio que fez eu realmente entender essa minha relação com o "não material" foi um dia que eu saí do quarto do meu primo e ouvi, vinda do escuro quarto dos meus tios, do outro lado do corredor, uma voz me dizendo "desce", no tom mais imperativo imaginável. Não havia ninguém lá. Meu primo estava no quarto atrás de mim e todas as pessoas estavam bem visíveis na sala, logo abaixo. Não foi eco, alguém fazendo graça ou qualquer coisa assim. Eu ouvi, assim estou convencido. Obvio que desci correndo para a aba de meus pais.

Foi na hora de ir embora quando finalmenteaconteceu o que tinha para acontecer. O fato comum para minha família: Euestava descendo as escadas, sem ninguém perto, quando cai de um jeito esquisitoe comecei a rolar degraus abaixo até o nível da rua. Todos os três adultospresentes (meus pais e minha tia) viram eu ser arremessado. Alucinaçãocoletiva? É possível. Minha versão? "Segura no corrimão", me ordenou a mesmavoz, mas não existia um corrimão para eu segurar. Enquanto eu olhava para oslados procurando por um senti um pé enfiando uma solada bem servida nas minhascostas. Pode ser desatenção de uma criança? Certamente, mas eu sei bem como ésentir o peso do pé de alguém te chutando, e me refiro a esse sentimento emrelação à coisa física e não à solada filosófica, que também conheço bem, porisso sei que são coisas bem diferentes.    

Noites sem sonhos & sonhos acordadosOnde histórias criam vida. Descubra agora