Vamos falar um pouquinho agora sobre o mito de Narciso, sua relação de analogia com a psiquê e sua contribuição para a compreensão da figura do artista.
O mito de Narciso de acordo com a Wikipédia:
"Narciso era um belo rapaz, filho do deus do rio Céfiso e da ninfa Liríope. Por ocasião de seu nascimento, seus pais consultaram o oráculo Tirésias para saber qual seria o destino do menino. A resposta foi que ele teria uma longa vida, se nunca visse a própria face. Muitas moças e ninfas apaixonaram-se por Narciso, quando ele chegou à idade adulta. Porém, o belo jovem não se interessava por nenhuma delas. A ninfa Eco, uma das mais apaixonadas, não se conformou com a indiferença de Narciso e afastou-se amargurada para um lugar deserto, onde definhou até que somente restaram dela os gemidos. As moças desprezadas pediram aos deuses para vingá-las. Nêmesis apiedou-se delas e induziu Narciso, depois de uma caçada num dia muito quente, a debruçar-se numa fonte para beber água. Descuidando-se de tudo o mais, ele permaneceu imóvel na contemplação ininterrupta de sua face refletida e assim morreu. No próprio Hades ele tentava ver nas águas do Estige as feições pelas quais se apaixonara."
Em psicologia sabe-se que a formação do eu passa pela apreensão da imagem corporal, reconhecer-se na própria imagem refletida é um salto da consciência que permite separar o eu do outro através de um movimento de delimitação do eu. Por volta dos 6 meses a quantidade de vezes que um bebê se expôs a um espelho já é suficiente para que ele seja capaz de reconhecer com segurança até onde vai o seu corpo e o do outro. Uma vez que o outro é variável, mas o eu é sempre o mesmo, esta identificação acontece por um processo de exclusão. A partir daí até os dois anos de idade a criança se interessará profundamente por si mesma. Imitará ativamente os outros ao seu redor e cada nova habilidade adquirida será um grande reforço para sua auto-imagem e consciência-do-eu. Crianças nesta idade podem se divertir por muito tempo brincando sozinhas com um espelho. A este período da vida os psicanalistas gostam de chamar de "narcisismo" ou fase narcísica, porque assemelha-se bastante ao mito que citamos.
Durante a infância os estímulos a que nos expomos nos permite aperfeiçoar mais estas ou aquelas habilidades e somando a esta cadeia de estímulos o fator individual da preferência, temos possibilidades muito variadas de combinações para o desenvolvimento das inteligências. Irmãos gêmeos univitelinos ainda assim poderão ter preferências distintas desde novinhos, pois a própria experiência intra-uterina já estabeleceu traços diferentes em cada um. O que ficou mais tempo para cima, ou que ficou sufocado um tempo depois de tentar deixar-se sob o irmão e teve o cordão esmagado no processo... O cérebro já nasce com algumas impressões e isto já produz um certo "filtro" pessoal para os estímulos em cada indivíduo, como um gérmen para as futuras preferências complexas.
Então chegamos no artista. Assim como certas pessoas terão preferência pelas habilidades adquiridas em outras fases, o artista claramente prefere as que surgiram no período narcísico do seu desenvolvimento. Ele aprecia as atividades que desenvolvem sua consciência-de-si e sua capacidade comunicativa, mesmo que indiretamente. E com isso a criança vai tornando-se artista também pela aprendizagem. A arte é uma das poucas profissões de hoje que realmente podem ser cultivadas desde a infância sem grandes tabus ou pressões. Um pai normalmente incentiva seu filho quando este demonstra aptidão para desenhar, por exemplo, até o coloca na escola de artes, mas se ele não quiser mais, é raro ver o pai fazendo pressão para continuar. De alguma forma, talvez por se aproximar tanto do lúdico e do onírico, a arte conseguiu driblar todas as censuras que o homem já conseguiu imaginar e sobreviver.
Mas para privilegiar tanto assim estágios tão tenros do desenvolvimento, a personalidade do artista aproxima-se perigosamente da personalidade do louco. Este voltar-se para si como forma de conseguir satisfação deixa o eu sem referências externas e quando as referências são frágeis, não há como diferenciar o real da imaginação. Muitas vezes vi pessoas "loucas" (esquizofrênicas, paranóicas, maníacas, etc.) com discursos pontuados de realidade, mas fugidio. O que é plausível em um momento logo se torna disforme e infundado. Para não enlouquecer e perder-se em sua própria imaginação, o artista então lança mão do outro para reforçar essas referências. Você já deve ter notado a sensibilidade de vários artistas à crítica de seus trabalhos. O olhar do outro é de extrema importância para o artista, pois é pela exclusão que ele decidirá se sua obra é ou não capaz de satisfazer os desejos desse outro que é também o seu próprio eu.
Diferente da maioria das pessoas, o artista privilegiou tanto suas descobertas narcísicas que não pôde dar a devida atenção ao que viria depois. Na sequência do desenvolvimento, com o eu já bem definido, a criança volta o olhar para o outro como fonte do saber sobre o mundo. É o pai (o deus do rio) quem traz os limites agora do mundo e não mais do corpo. Essa relação fluida e instável fornecerá os instrumentos para que, a seguir, a criança possa ela própria delimitar suas ações e julgar por si só o que lhe convém. Então, depois de excluir o outro para definir o eu pela imagem corporal, o outro retorna à cena na condição de modelo, de espelho vivo, como não-eu que o eu deseja ser. Absorvendo com o tempo a imagem do outro a consciência a incorpora à própria imagem do eu e amplia suas capacidades de juízo e projeção de futuro. Assimilar o outro como parte integrante do eu introjeta também o mundo, insere o eu nas relações interpessoais e faz um laço definitivo com a realidade. Nota-se que depois dos 10 anos torna-se cada vez mais raro uma pessoa acordar ainda confusa entre o sonho e a realidade, pois agora os elementos que separam estes dois mundos tornaram-se bem definidos e não se misturam mais.
O outro do artista não foi bem assimilado pelo eu. Ele é irremediavelmente externo. Assim como seu laço com a realidade. Por isso ele se torna tão bom porta-voz da verdade das aparências. Para o artista o outro é sempre um estranho com o qual ele não pode misturar-se. O artista não se adapta ao sistema porque não incorporou este sistema em suas demandas de satisfação. Mas para não enlouquecer eles mantém o outro na posição de juiz externo e detentor do conhecimento. Se o artista não consegue transmitir corretamente sua intenção através de sua obra, esta é inútil. Mas para saber se ele "falou" corretamente, ele precisa saber o que o outro escutou. O significado último de sua obra vem do outro e isto o impede de mergulhar em um narcisismo absoluto. Sem satisfazer também a necessidade do outro, o eu não se apazigua e a obra é ineficaz, mas ao satisfazer essa necessidade, a obra se torna mais do que a criatura, o reflexo do artista, torna-se seu próprio eu e já não pode mais refleti-lo. A produção artística repete ad infinitum a relação eu-outro que não foi assimilada na infância.
Notamos então a fragilidade da personalidade artística. Seu elo com o mundo das aparências está apoiado em uma conturbada e incerta relação com o outro. Os pais de Narciso (seu outro protetor) não foram capazes de protegê-lo o tempo todo. Assim são os laços do artista com o mundo real, às vezes falham e ocasionalmente eles sucumbem, como Michelângelo e seu Moisés, ou Van Gogh, com a insistência de sua orelha em escapar de seu olhar no espelho. Há porém certos contextos sociais que parem favorecer o surgimento de gerações inteiras de artistas particularmente mais frágeis e pré-dispostos à ruptura extrema com a realidade, como aconteceu aos artistas das décadas de 60/70 ou a geração do Mal do Século. O que estaria por trás dessas tendências suicidas se alastrarem no meio artístico em momentos tão pontuais e agudos?

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Arte Fato
Non-FictionO que é a arte? Quem é artista? O que determina o limiar entre a sensibilidade artística e a anestesia geral do mundo? Este livro é um ensaio filosófico e psicológico sobre a arte, o artista e a estética inseridos nos contextos pós e pré-modernistas.