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“ Grampeado dentro de um mundo exterior e estou bem amarrado, bizarro, mas confortável.
Claustrofóbico, fechando e eu sou Catastrófico.”— Before I Forget, Slipknot   

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Olhando para o teto escuro, deitado na cama, eu ouvia os ruídos silenciosos da casa. O vento frio do final do outono atravessando as frestas da janela, assobiando. Ouvia as vozes na minha mente. Os gritos, os sussurros, as questões.
Eu tinha dezessete anos e vivia imerso em uma crise existencial sem fim e uma tristeza melancólica que nunca passava. As vezes doía de um jeito que eu chegava a pensar que iria sufocar. Me sentia claustrofóbico na minha própria casa, inseguro na rua. Era como se o mundo não me quisesse ali e eu também não estava mais fazendo questão de permanecer nele, verdade seja dita.
      Tudo começou, começou mesmo no nono ano. Ou talvez anos antes disso, se considerar todos os fatores que me levaram até aquele momento em especial, mas não quero falar da minha infância, tem coisas que é melhor trancar em um baú e jogar no rio para correnteza levar. Ou só fingir que não aconteceu para não se afundar ainda mais em memórias mortas...
Voltando ao início, no nono ano, eu tinha catorze anos e minha vida era uma droga. Parece drama, não é? A vida de todo mundo nessa fase é uma droga, tudo é intenso demais, pesado demais, terrível demais... Mas eu tinha uma sucessão de motivos que faziam a minha vida ser uma droga.
     Eu morava com minha mãe, que trabalhava o dia inteiro para sustentar a casa, e minha irmã mais nova que na época parecia ter um verdadeiro dom para me tirar do sério. Quando fazia birra, quando chorava, quando mexia nos meus CDs, as vezes até quando ela respirava me irritava. Hoje vejo que a culpa não era dela. O problema, definitivamente, era eu.
        Digamos que o mundo nunca tentou ser gentil comigo. Nem sequer fui recebido com boas vindas ao chegar aqui. Nasci no inverno de 1997, filho de uma adolescente confusa e um alcoolatra irresponsável. Quando a bolsa estorou, minha mãe — no auge da inexperiência dos seus dezoito anos — estava em casa sozinha enquanto seu namorado, que depois de engravida-la recebeu uma promoção para marido, estava enchendo a cara em um boteco qualquer. Diferente da minha mãe, aquele que me doou o cromossômo Y não era um adolescente. Tinha vinte e sete anos completos, vinte e sete anos de muita irresponsabilidade, insensibilidade, festas e bebedeiras. E naquela quarta-feira fatídica em que eu chegaria a esse mundo, ele estava bêbado como um gamba e ela estava se arrumando para ir trabalhar. Eu fui inconveniente desde cedo, não bastava já ser indesejado, não, o pequeno Victor tinha que decidir nascer no pior momento também.
Consigo imaginar o desespero daquela jovem garota ao começar a sentir as contrações e se ver totalmente molhada por um líquido estranho que saía de dentro de si. Sozinha, assustada, sem conseguir falar com o idiota que deveria estar com ela naquele momento. Que deveria segurar sua mão e jurar que tudo daria certo, "aguenta firme" ele deveria dizer "é o nosso filho". Okay, tá, talvez eu esteja exigindo demais, considerando que ele nem me queria para começo de conversa.
Em resumo, minha mãe foi levada para o hospital público mais próximo com ajuda de uma vizinha e muitas horas, dores, gritos e lágrimas depois, eu nasci. Quase morto, mas nasci! O negócio é que quando a bolsa estorou eu não estava lá em uma posição muito favorável.
Talvez isso tenha sido um sinal, não é? Um prévio aviso de que eu não queria vir para esse mundo, de que esse lugar iria me fazer querer morrer.
No dia seguinte, meu pai foi nos buscar na maternidade e aí o inferno de fato começou.
         Cresci em uma casa que constantemente cheirava a álcool e mais parecia uma zona de guerra. Cinco anos e meio depois, mais um membro foi inserido naquele projeto mal forjado e falho do que deveria ser uma família. A pequena Viviam foi tão indesejada quanto eu, não pela nossa mãe, claro, mas por ele.
Mais dois anos passaram até ele se mandar. Não sei como foi, não sei se ele me olhou uma última vez, se me fez um pedido de desculpa silencioso por ser um covarde. Só lembro que acordei no dia seguinte e ele não estava mais lá. O dia passou como de hábito e só a noite perguntei por ele.
— Ele não vai vir para casa hoje.— foi tudo o que a minha mãe respondeu.
— Por que?
— Não se preocupe com isso, Victor.
Não se preocupe com isso, Victor.
Não pense nisso, Victor.
Você é muito novo para entender certas coisas, Victor.
Não se preocupe.
Como se fosse simples assim não me preocupar, não perguntar, não pensar. E ela estava errada, eu podia não compreender tudo mas entendia o suficiente para começar a odiá-lo.
     E desde aquela noite de março passou a ser só nós três: Viviam, nossa mãe e eu. E naquele dia —  anos depois — sentado no ônibus indo para a escola, eu me peguei pensando que talvez fosse melhor se fossem só elas duas.
Como disse, eu tinha catorze e minha vida já era uma droga. Naquela quinta-feira em especial meu dia havia começado da pior forma possível, com uma briga matinal mãe&filho. Nossa relação nunca foi das melhores, afinal eu fui o "castigo dos seus pecados", eu que nasci para "atrapalhar sua vida", ela perdeu toda a juventude por que me teve. Como se eu tivesse chegado na porta dela e batido gentilmente para solicitar meu nascimento, até parece!
      Eu me sentia um completo intruso naquela família. Não via o mundo como a minha mãe e minha irmã viam, não queria para mim as coisas que ela queria, não era próximo dos meus primos nem dos meus tios, amava meus avós mas até para eles eu era um estranho. Desde o corte de cabelo ao jeito de me vestir, quando coloquei o piercing então... Nossa! Me tornei oficialmente o desgosto da família. Esquisito, rebelde sem causa, cheio de notas baixas.
Não importava o quanto eu tentasse me esforçar para melhorar as notas ou ser melhor, ser como eles queriam, nada funcionava, em determinado momento já não sentia mais vontade de nada. Absolutamente nada. Vivia os dias meio que no piloto automático: acordava, tomava banho, comia, brigava, ia para a aula, voltava para casa, cuidava da Viviam até nossa mãe chegar em casa cansada, frustrada, estressada e descontar em mim como se a culpa por tudo fosse minha, brigávamos, as vezes eu chorava, sangrava, tomava banho, dormia. Todos os dias, as mesmas coisas. Era como se a minha vida houvesse se tornado uma pintura cinzenta que a cada dia ganhava novos borrões, ficando embaçada, feia, sem graça e totalmente sem sentido.
Talvez tenha sido por isso que pensei aquilo. Sentado no ônibus, a poucos minutos da escola, me perguntei: como seria se eu morresse? Se o volante travasse e o motorista não conseguisse fazer a curva, então o ônibus fosse de encontro ao grande muro de concreto bem a nossa frente e eu morresse? Só fiquei encarando o muro enquanto a cena passava na minha cabeça, lembro-me até de ter imaginado os gritos, o choro. Meu corpo estirado no asfalto, sangue viscoso saindo do meu nariz enquanto a vida sumia dos meus olhos, se esvaia do meu corpo e ao longe eu ouviria um som de um sirene tocar tarde demais.
       Passei o resto do dia pensando naquilo, em certos momentos até me assustava. Com o passar do tempo pensamentos como aquele se tornaram mais frequentes. Vez ou outra eu me pegava pensando em formas aleatórias de morrer.  Um dia em que perdi o ônibus e voltei para casa sozinho, já estava escurecendo e eu pensei que se fosse assaltado e reagisse, talvez morresse. Alguns tiros ou facadas e meu corpo no afasto, imerso em dor e topor até tudo cessar de uma vez por todas, para sempre. Também cheguei a cogitar a possibilidade de uma morte súbita*, uma vez no banho. Parada respiratória durante o sono. Uma bala perdida. Um AVC, li em algum lugar que quanto mais jovem, menor é a chance de sobreviver a um acidente vascular cérébral. Atropelamento, possibilidade pela qual eu já não olhava mais para os lados antes de atravessar uma rua ou rodovia. O pensamento mais frequente era também o mais fácil, a morte mais simples: dormir e não mais acordar. Cada dia algo na minha rotina fazia meu cérebro me mostrar novos modos aleatórios de deixar esse mundo. Eu queria morrer, só que isso era algo difícil demais de admitir, até para mim mesmo.
Por anos fiquei nesse triste, as vezes assustador, e doloroso jogo mental. Que eu chamo de "e se...?" porque, afinal de contas, não passava disso, de um grande "e se?" na minha cabeça.
      Em raras ocasiões os pensamentos não eram tão aleatórios assim, eram quase como uma escolha apontada bem na minha frente, com uma interrogação brilhante me questionando se eu ia ou não seguir em frente com aquilo.
Como em uma noite de meados de julho, semanas antes do meu décimo sexto aniversário. Eu estava no banheiro, o chuveiro ligado espalhando vapor morno pelo lugar e deixando a água cair no chão, uma queda direta contra o piso de cerâmica sem meu corpo sob ela fazendo um caminho gentil até o piso, não. Eu estava a poucos passos dali, encarando meu rosto no pequeno espelho quadrado e o barulho que a água fazia ao bater no chão mal chegava aos meus ouvidos com fones no volume máximo. Um barreira de som que me impedida de ouvir minha mãe gritando na sala, repetindo o quão inútil eu era, colocando defeito em qualquer coisa que eu fizesse. Quanto mais pesado os sons metálicos nos meus fones, mais longe daquela realidade me sentia, menos eu a ouvia me criticar, me odiar. Mas nada era o suficiente para calar as vozes na minha cabeça, os ecos dos gritos que eu não podia ouvir, a raiva que me consumia.
Segurando a lâmina entre os dedos, eu encarava os meus olhos marejados, a raiva pedido para sair em forma líquida junto com toda a dor que as lágrimas pudessem carregar, o grito sufocado na garganta e o desejo desesperador de que aquele inferno acabasse. Tudo isso estava refletido nos meus olhos, em minha expressão, na tensão em cada centímetro do meu corpo.
Olhei para o fino metal frio que segurava, uma coisa tão pequena que refletia dores tão insuportáveis. Mas não estou falando das dores que ela causava em minha pele, do ardor nem do sangue, não, me refiro as dores que me levavam a fazer aquilo. Cada fragmento de sentimento que juntos me fizeram chegar àquele ponto.
      Deslizei a lâmina no meu pulso, sentindo a pele abrir devagar, ardendo sem presa enquanto pequenas gotículas de sangue vivo buscavm passagem, emergindo até escorrer e pintar o chão. Outro movimento e senti mais um filete fino de pele se abrindo. E então veio a pergunta, a escolha, e se? E se eu fizesse diferente dessa vez, fosse mais fundo e não na horizontal como sempre? Quanto tempo levaria até a vida se esvair de mim? Quando me encontrasse, ainda haveria vida em meu corpo? Será que me arrependeria?
As guitarras e a bateria continuavam ecoando agressivas em meus ouvidos, as lágrimas que eu já não podia mais conter eram como uma cortina amarga e salgada que cobria dos meus olhos até a boca.
Eu queria que tudo aquilo acabasse, toda dor, ódio, mágoa, toda culpa que jogavam em mim. Queria esquecer tudo. Os apelidos que me davam até a sexta série — antes de mudar de escola e simplesmente não falar mais com ninguém —, o jeito que me olhavam, a imagem dele bêbado a agredindo, as brigas deles, os cacos de vidros no chão.
Outro corte.
Mais lágrimas.
Outro corte.
Um pouco de alívio momentâneo.
Era isso o que eu queria, alívio. Que tudo desaparecesse, só isso.
Segurei a lâmina sobre o pulso e a pressionei, tentando encontrar coragem em meio a tanto desespero para ir em frente e acabar com tudo de uma vez.
Só que eu não conseguia e não conseguia porque, no fundo, eu ainda tinha uma fagulha de esperança de que uma hora eu ficaria bem. De que havia uma razão para tudo aquilo, não podia ser em vão, eu não podia ter nascido só para ter uma vida mizeravel e depois acabar morto, sangrando aos poucos no chão do banheiro
Eu ainda tinha um pouquinho de esperança e isso me trouxe um medo novo. O que iria fazer quando toda a esperança se fosse?

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* A morte súbita é um evento inesperado e dramático, sendo conceituada como a morte que ocorre no máximo em uma hora após início dos sintomas, em geral, em poucos minutos, não decorrente de trauma ou violência. A morte súbita cardíaca é a morte inesperada causada pela perda da função cardíaca.

BREATHING [ SetembroAmarelo ]Onde histórias criam vida. Descubra agora