DOIS

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"Algum lugar além deste mundo
Eu não sinto mais nada.
Querida Agonia, só me solte.
Sofrer lentamente, é assim que tem que ser?
Não me enterre...sinto muito."- Dear Agony, Breaking Benjamin

⚫⚫⚫

Da cama eu podia ver, pela fresta maior da janela, que la fora o sol já havia se retirado, dando lugar a noite. As imagens da primeira vez em que pensei em ir além não me saiam da cabeça. Fazia pouco mais de um ano desde aquele dia, mas por vezes ainda me sentia desesperado, confuso, perdido. Sufocando em mim mesmo, preso entre essas paredes. E não achava que aquela fagulha restante de esperança que eu tinha aos dezesseis ainda estivesse lá.
Olhando para o teto, ouvindo a minha respiração ecoar junto ao silêncio, eu pensei que não aguentava mais. Calmamente, encarando o reflexo dos meus olhos no espelho da porta do armário, eu cheguei a essa conclusão. No fundo nem foi naquele exato momento, há semanas, meses, eu sentia não ser mais capaz de suportar todo aquele peso, nada estava melhor, pelo contrário a dor só crescia e era demais para aguentar, um peso que eu não queria nem podia mais carregar. Era isso, eu não aguentava mais.
E foi a primeira vez que pensei em suicídio voluntariamente, comecei a pensar e continuei, sem ser movido por desespero encharcado de lágrimas como das outras vezes em que pensei em fazer isso desde aquela noite.
Lembro-me de pegar o iPod que estava largado na cama ao meu lado e dar play, antes mesmo de colocar os fones no ouvido. Eu precisava pensar, me concentrar, refletir bem, me certificar. Só música poderia me ajudar, de um jeito ou de outro... E por que? Bem, porque em todos esses anos eu busquei esperança e coragem nas melodias e versos, busquei nas canções a força que pensava não ter, então se elas não pudessem me dar esperança naquele momento nada mais poderia!
A primeira coisa que me veio a mente, após a decisão tomada em silêncio no mais íntimo do meu ser, foi a possível reação das pessoas. Alguém choraria por mim? Iriam se arrepender pelas vezes que me fizeram sentir mal comigo mesmo? Pelas vezes em que me fizeram odiar tudo em mim, me sentir estranho, deslocado, indesejado? Ele iria se arrepender de ter ido embora? de ter sido o bêbado covarde demais para estar lá quando precisei dele? Ela se arrependeria de ter jogado o peso do seu mundo e dos seus problemas em mim como se o meu próprio mundo já não fosse pesado demais, como se eu fosse o culpado por cada vez que algo na vida dela deu errado?
Será que ela iria perceber que não me odiava?
Uma lágrima dura escorreu por minha face, pois já seria tarde demais! Tarde demais para arrependimentos, para descobrir sentimentos, para pedir perdão. Eu tinha tomado minha decisão. Que outra opção tinha?
O que mais poderia fazer além de acabar com aquele inferno de uma vez?
Eu sabia que não ficaria bem, não enquanto o mundo a minha volta continuasse insistindo em me destruir. Queria não sentir mais todas aquelas coisas, aquela constante vontade de desaparecer, toda a agonia que me consumia e me matava aos poucos todos os dias.
Confesso que senti medo. Medo de na hora não conseguir ir até o fim, de me arrepender quando já fosse tarde demais, de estar fazendo a escolha errada, de talvez aquela idéia de que toda a dor que senti até então não ter sido em vão estar certa. Mas eu não queria ter medo, não podia. Tinha decidido, não é?
Fiquei horas a fio, encarando o teto ou o meu reflexo no espelho do armário, pensando. Planejando. Me certificando de que tinha certeza daquilo. O mais assustador foi perceber que eu tinha, que pensava não me restar mais esperança, que aquela era a minha única opção, a única solução que eu poderia encontrar para silenciar todas as vozes e acabar com todas as dores. Um fim definitivo para elas. Para mim.
        Naquela noite quando minha mãe chegou, tão cansada e estressada quanto sempre, eu ainda estava deitado na cama, imerso em meus pensamentos. Viviam assistia TV na sala, quieta. A chegada dela foi denunciada por sua voz gritando meu nome, não ouvi, a música em meus ouvidos estava alta demais.
— Victor! — ela chamou, não ouvi. — Victor! Victor abre a porra dessa porta! — dessa vez a voz veio acompanhada de batidas na madeira escura da porta. Tentei ignorar. Quis ignorar. Mas a irritação na sua voz, deixava mais do que claro que era melhor não.
— Victor, porra, abre essa merda!
Levantei e caminhei devagar até a porta, antes de abri-la tirei os fones e respirei fundo. Aguente só mais um pouco.
— Si...
— Não viu que a sua irmã ainda não jantou?! — ela me interrompeu. O cansaço misturado a irritação nos seus olhos claros. Nas fotos que ela tinha de antes de conhecê-lo, os seus olhos eram mais brilhantes, eram como um poema. Lindos olhos castanho-claro.
—Ela me disse que quando sentisse fome fazia um macarrão instantâneo.
— E o que você estava fazendo que não podia preparar algo para Viviam comer? — as mãos na cintura, o suspiro exasperado, os olhos faiscando e a face se retorcendo de raiva. Todos os sinais de que ela estava se controlando para não gritar, não jogar tudo em mim como sempre. Não que fizesse isso por mim, claro que não, era pela pequena Viviam que não podia ver brigas que desatava a chorar, pelos vizinhos que pensavam que éramos loucos.
— É... - olhei em volta, buscando algo, uma resposta que fosse boa o bastante para evitar uma briga. Buscar modos de evitar brigas era parte da minha rotina já, um hábito que adquiri sem nem notar. — Nada.— respondi a verdade após não achar nada. — Mas eu vou lá agora fazer o...
— Não precisa.— ela me cortou — não se incomode — a ironia escorrendo por seus lábios — volte a fazer seu nada. É só o que você faz mesmo! — ela me deixou e foi fazer algo para Viviam comer. Fiquei em pé, a observando e tentando não gritar uma resposta para aquela combinação de palavras injustas que ela proferiu.
Só isso que você sabe fazer.
Claro, porque ela era que tinha que lidar com uma mãe maluca, sempre estressada, nunca satisfeita com nada e que parecia querer enlouquecer você. Não era o Victor que ficava em casa aturando as birras de uma criança que sempre conseguia o que queria, não era ele que as vezes bancava o pai para a irmã. Claro que não. Só nada era o que fazia. Claro.
Bati a porta com força e voltei para cama, irritado, mais determinado a ir adiante.
           Horas depois, ela voltou ao meu quarto, armada de todos os insultos e humilhações possíveis. Tinha dias em que ela parecia estar fazendo de tudo para me tirar do sério e transformar aquela casa em um campo de batalha. Mas dessa vez não funcionou. Pelos dias que seguiram, eu me entreguei a uma melancolia monótona e automática. Ouvia cada xingamento, cada defeito que ela apontava, cada erro que dizia ser meu, em silêncio. Não briguei. Não gritei. Não falei nada além do necessário. Também não sai do quarto, não fui as aulas nem expliquei o porquê.
Aos poucos fui levando para o meu quarto cada item que iria precisar, um segredo só meu que logo todos saberiam.
Por noites eu chorei. Era uma decisão difícil. Era terrível sentir tudo aquilo. Toda a dor e ódio, desespero, falta de esperança, de propósito. Me senti covarde em alguns momentos pois, de certo modo, eu estava desistindo. Fracassando em melhorar, em provar para ela que não era o que ela pensava, que podia ser alguém. Que não estava condenado por ser fruto deles dois.

Alguns dias antes do momento chegar, eu fiz algo que sempre quis. Fiz algo por mim. Contei o cabelo e pintei se verde. Eu sempre quis colorir o cabelo, mas me preocupava demais com o quanto aquilo iria irrita-la, com quantas brigas causaria, com os xingamentos que iria ouvir. Mas se eu estava fadado ao fim, ao menos uma única vez tinha que fazer o que queria, só por mim. Era minha última chance de mostrar a todos quem eu era. Meu último ato de rebeldia.
Quando cheguei em casa já estava escuro e minha mãe já tinha chegado do trabalho. Sentada no sofá, ela me viu entrar na sala. Sério, me agarrando a toda arrogância que podia haver em mim...
Naquela noite não tive como me segurar para não brigar. Quando dei por mim as palavras já estavam escapando por entre meus lábios e ela gritava. Viviam nos olhava, assustada. E eu vi nos olhos dela uma coisa que me fez querer abraça-la e chorar, era o mesmo olhar de confusão e medo que escurecia meus olhos quando ele chegava bêbado em casa e eu os assistia transformar a sala de estar em uma zona de guerra. Com gritos e palavrões, agressões e cacos de vidro se estilhaçando no chão.

Depois que a briga acabou, fui até o quarto da Viviam, levando comigo os únicos dois CDs que tinha da minha banda favorita, Nirvana, e o meu disco preferido do John Lennon. Eu havia prometido a ela certa vez que lhe contaria todas as histórias lendárias das minhas bandas de rock favoritas, iria transformá-la na rockeira mais incrível de todas, ela queria. Seria divertido. Nunca aconteceu...
Agora, ao menos, ela poderia aprender, mesmo que sozinha. Viviam me encarou com desconfiança ao abrir a porta.
— O que você quer? — indagou ela.
— Vim te dar um presente.- mostrei os itens.
— Me dar?—  a sobrancelha dela se arqueou e ela fez aquela carinha que perguntava sem palavras "o que você tá tramando?". Balancei a cabeça afirmativamente, em resposta.
— Mas você nem me deixa tocar neles, agora vai me dar?
— Vou ué. Não quer? Se não quiser, eu poso levar de volta e...— fingi que ia me virar para voltar ao meu quarto.
— Não, eu quero.
— Então são seus.— os entreguei e o sorriso que surgiu no rosto dela naquele instante foi como uma luz, uma luz tão pura e inocente que fez meu coração doer.
Ela se afastou da porta, me dando passagem. Diferentemente do meu quarto que era uma bagunça de livros e roupas espalhadas, o dela era perfeitamente organizado. Paredes sem rabiscos, pintadas de cores claras, enquanto o meu era escuro e as paredes completamente rabiscadas, cheias de trechos de poesia e letras de canções, desenhos tortos e palavras aleatórias.
— Nirvana e John? Uau! Tem certeza que quer me dar eles?
— Tenho, sim.
— Não vai querer de volta depois?
— Claro que não, são seus.
— Mamãe não vai gostar.
— Ela não precisa saber. Pode ser nosso segredo.
— Segredo? O que estamos escondendo? Não sei de nada.—  ela riu, me fez rir também.
Deitamos na cama dela e eu respondi as suas perguntas sobre as canções e as pessoas naqueles álbuns. Até que uma pergunta em especial se destacou, soube naquele instante que guardaria aquele momento para sempre dentro de mim.
— Victor — começou ela — o que quer dizer Nirvana?
— Nirvana? — me virei para olhá-la.
— Uhum.
— Nirvana é... Bom, — pensei um pouco, me perguntando qual a melhor forma de explicar para ela isso. — Nirvana é tipo liberdade. Liberdade total do sofrimento. Da dor.
Nirvana é tudo o eu quero. Pensei.
— E como se consegue Nirvana?
— Não se conconsegu, se alcança.
— Como?
Eu a encarei, os olhos dela estavam fixos em mim, faiscando de curiosidade. A resposta piscando em minha mente, mas eu não podia dizer aquilo, não com o que eu estava pretendendo fazer. Não podia dizer a Viviam que algumas pessoas acreditavam que Nirvana se alcançava com meditação, outras que a morte é exatamente isso. Libertação total do sofrimento e da dor, a plenitude do Nirvana.
— Ah, dormindo.— falei por fim.
Não era de todo uma  mentira se visse por certos ângulos.
— Hm. — ela parecia pensar sobre aquilo. — Bom, então é melhor você ir embora antes que mamãe venha aqui ver se já alcancei o Nirvana.
Eu ri, não tinha como não rir.
Fui para o quarto, fechei a porta e esperei o sono vir. Pensando na Viviam, em suas perguntas e no meu anseio pelo Nirvana.

BREATHING [ SetembroAmarelo ]Onde histórias criam vida. Descubra agora