CINCO

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" Estou tão calmo e tranquilo por dentro, não tenho que me esconder mais."- You know you're right, Nirvana.

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Abrir os olhos foi diferente. Foi como despertar de um devaneio profundo e se dar conta de que era a mais pura realidade. Não sei quanto tempo fazia que estava inconsciente. Não sei bem descrever o que senti ao abrir os olhos, foi um misto de sensações, desde confusão a compreensão. Levei alguns minutos para absorver a enxurrada de imagens e informações que foi atirada pela minha mente de uma só vez, até que entendi o que tinha feito... E então, por um breve segundo, cogitei ter conseguido e essa possibilidade doeu.
A primeira coisa que lembrei foram os olhos dela. Da Viviam quando entrou no quarto chamando por mim e me viu na cama, perdendo a consciência, a vida, sangrando.
Eu lembro de tudo o que senti. Lembro da dor, do sangue, das lágrimas. Do enjôo e do medo. Lembro de tudo o que me fez sentir medo naquele momento também. Razões que só entendi quando acordei e me vi sobre aquela cama, eu tive medo de conseguir. Tive medo de partir, temi que não se importassem o suficiente para chegar a tempo de me salvar. Era isso, tive medo de não ser salvo!
E, infelizmente, também lembro principalmente do desespero, do pavor que escureceu os olhos dela quando me viu. Essa é a última lembrança que tenho antes de tudo se escurecer. Até o meu despertar naquele quarto branco e frio...
Eu poderia contar como foi minha volta para casa. Como minha mãe, sentada ao meu lado quando acordei, reagiu. E Viviam, como ter me encontrado a afetou. Mas há coisas sobre as quais ainda prefiro não falar, não porque não quero, mas porque não saberia como descrever, como explicar. Posso dizer que minha mãe me abraçou, me abraçou de verdade como há muitos anos não fazia. Fiquei no hospital por uns dias, antes de receber alta e começar o tratamento psicológico.
Depressão aos 17. A notícia veio como um tapa que no fundo eu já esperava, era óbvio que tinha algo errado comigo. Tentei não deixar isso me afundar, eu havia prometido a Viviam que nunca mais faria aquilo, que iria melhorar. Não vou negar que tive vontade de sumir outras vezes, que houveram outros momentos em que me senti sufocando, em que sangrei, chorei, pensei que não ia aguentar. Mas aguentei. Estou aguentando, na verdade.
Há dois anos estou aguentando.
Vivendo.
Respirando.
Tentando.
Um dia por vez.
Tenho dezenove agora e ainda dói pensar naquele dia, lá nos meus 17, dói lembrar dos 16, dos 15, 9 também. Mas, as vezes, eu sinto que preciso falar só que não sabia para quem, não havia alguém para quem pudesse contar certas coisas. E as palavras pesam, sufocam também. Então descobri vocês - olho para os rostos a minha frente, duas dúzias de pares de olhos que me encaram - um centro de apoio onde haviam pessoas que não iriam me julgar - continuo - então obrigada por me ouvir! - recebi os aplausos. Eles aplaudiam minha coragem de falar mas, a verdade é que todos ali mereciam aplausos por estar tentando, lutando diariamente para continuar.
- Não me corto há pouco mais de um ano, as vezes ainda sinto vontade, como se pudesse ouvir a lâmina me chamar, sentir na carne que preciso. E aí paro, respiro, lembro que não, que não preciso.
Continue tentando. Lutando. Vivendo. Continue respirando.-
Caminho devagar por entre as cadeiras da pequena sala onde nos encontramos uma vez por quinzena e chego até a porta, a abro e vou embora. Já havia feito o que precisava fazer naquele centro de apoio. O sol brilhando lá fora é um convite para procurar o meu motivo para continuar respirando hoje, todos os dias procuro um, o de hoje veio como uma canção. Do outro lado da rua, sentada em um banco uma moça tocava violão e algumas crianças brincavam na praça.
Respirei e sorri.
Eu estava vivo, podia continuar assim!
Minha vida ainda é meio que uma droga e eu tenho muitas dores e mágoas presas dentro de mim, mas minha mãe e eu estamos tentando, Viviam está crescendo bem, em uma casa com menos brigas. E algumas coisas as vezes me fazem ver que pode valer a pena. Que pode haver algo mais para mim.
Infelizmente eu tive que quase morrer para ver isso. Hoje vejo que talvez, mesmo com minha mãe sendo complicada e nossa relação quase inexistente, ela teria me ajudado se eu houvesse pedido ajuda. Se eu houvesse contado.
Claro que eu queria que ela percebesse que eu não estava bem, que eu estava desmoronando, desistindo e por isso, por não notar, eu pensava que ela não se importava. O famoso cliché: ninguém nota, ninguém se importa. Mas não é bem assim, as vezes algumas pessoas não têm sensibilidade ou atenção suficiente, até paciência falta para perceber certas coisas. Ela não notou.
Não achou que fosse algo realmente sério.
Eu não falei.
Eu tentei...
Hoje fico aliviado de não ter conseguido. E ainda me pergunto as vezes: e se eu tivesse falado? Ou, e se eu tivesse morrido?
Caminho devagar e vou até a moça que toca violão. Uma canção folk que reflete como já me senti. Perdendo minha mente, perdendo o controle. As vezes essa sensação volta, como se estivesse lá, guardada, esperando para sair. Então eu escuto uma canção, eu respiro, eu busco algo que me dê razão para querer continuar vivo mesmo quando o mundo insiste em me fazer querer morrer.
Continue respirando.
Estou com você.
Encaro a moça, discretamente, ela tem cabelos castanhos e olhos verdes, a alguma coisa nela que me faz querer continuar ali, a admirando tocar, totalmente envolvida com a canção, é como uma luz. Não falo com ela, não hoje, dou meia volta e vou embora. Deixo para amanhã, o meu próximo motivo para sorrir e continuar respirando.

And so I run out to the things they say could, restore me
Restore life the way it should be...*

Ela continua cantando enquanto me afasto, levo aquela letra na memória. Mais uma canção para adicionar a minha playlist de emergência. Volto para casa, aliviado e pronto para restaurar minha vida do jeito que ela deveria ser.

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* Cough Syrup, Young The Giant.
Tradução do trecho: "Então eu corro para o que eles disseram que iria me restaurar
Restaurar a vida do jeito que ela deveria ser."

BREATHING [ SetembroAmarelo ]Onde histórias criam vida. Descubra agora