TRÊS

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“ Não se sinta mal por mim, eu quero que você saiba, do fundo do meu coração, eu ficaria tão feliz em partir.”— Asleep, The Smiths

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Quando o dia chegou, tentei conter a ansiedade temerosa que começava a me tomar.  Fiz todas as coisas como de costume. Até fui a escola, após vários dias sem ir. Cumprimentei algumas pessoas no corredor, não sei bem por que razão quis cumprimentá-los, nunca me importei, mas o fiz. Na volta para casa, no ônibus, não pensei em prováveis acidentes e tragédias que poderiam acontecer no trânsito.
        Quando cheguei em casa, Viviam já havia chegado da escola, lhe fiz um almoço, limpei a casa, conversei um pouco com ela sobre o In Utero. Ela o estava ouvindo há dias, queria decorar todas as músicas dele antes de ir para o próximo CD da Nirvana para só depois de decorar as faixas dele também, ir para o disco do John. Ela me disse que até então sua favorita era Heart-shaped box, mas não entendia muito bem a letra.
Um pouco depois fui para o meu quarto, tomei um banho demorado e parado em frente ao espelho do banheiro, me perguntei uma última vez se tinha certeza...
Não sabia se ia logo em frente naquele momento ou esperava um pouco mais, optei por esperar escurecer. Vesti uma roupa confortável, minha camiseta favorita que não só era do Nirvana como trazia estampada a arte do In Utero.
E com os fones no ouvido, sentado na cama com as costas na parede, abri a garrafa de vodka — que comprei dias antes e escondi no quarto, junto com as lâminas e os comprimidos — e comecei a beber. Devagar, um pouco de cada vez. O líquido amargo descia rasgando, quente, em minha garganta, nem sequer gostava do sabor, nunca fui muito chegado em álcool, mas beber ajudaria. Tornaria mais fácil não sentir, não me importar, só ir em frente.
Um gole
Um Rifle de guitarra.
Um gole
Uma lembrança que queria esquecer.
Uma lembrança dura
Uma lágrima buscando passagem.
Um gole.
Por alguma razão, comecei a pensar nele. A lembrar de como ele era, sempre bêbado, bravo, insatisfeito e irritado. Lembrei de como ele costumava fazê-la chorar todas as noites, e de como vê-la chorar me fazia querer chorar também. E eu chorava.
Chorei naquele momento, enquanto lembrava de tudo o que me fez chegar até ali. Do quanto cada lembrança doía e me fazia sangrar, do quanto eu queria que acabasse.
Um gole
Lembranças
Lágrimas
Goles e goles.
Dor
Medo
Receio.
Em determinado momento, eu já nem me importava mais em conter as lágrimas e os soluços, não me importava se alguém ouviria. E daí se ouvisse? Ninguém se importaria.
Não sei em que momento ela chegou do trabalho, não notei, mas agora ouvia seus ruídos da cozinha. Panelas. Louça. Frango sendo cortado na pia.
Coloquei os fones de volta e silenciei todos os ruídos dela, infelizmente não era tão simples assim silenciar a minha mente.
      Dei mais um gole grande no líquido incolor, antes de esticar o braço e abrir a gaveta de cima do velho criado-mudo ao lado da cama. Peguei os comprimidos e a lâmina. Era a hora. Melhor ir em frente de uma vez. Lembro que minhas mãos tremiam um pouco, eu estava nervoso. Dezenas de questões e imagens ecoavam em minha mente. A voz do Cobain não era o suficiente para camufla-las.
Encarei os compridos, os abri e coloquei na palma de uma mão, com a outra segurava a garrafa. Os levei a boca, ainda trêmulo. O coração acelerando. Assustado. Ansioso. Temeroso. Cheio de lágrimas. De dor.
Os engoli, o líquido amargo os empurrando para baixo.
Quanto tempo será que vai demorar?
Peguei mais alguns comprimidos e engoli. Tinha que ser suficiente. E se eu não tivesse comprado uma quantidade suficiente? Como uma resposta, o metal fino ao meu lado reduziu.
Seria a última vez que eu sagraria. A última que sentiria dor. Uma última vez...
      Sangrei devagar no início. Começando a me sentir tonto, o estômago revirando, não sabia se era efeito da vodka ou se era assim que se iniciava o fim. Mais um corte, outro, mais um, dessa vez mais fundo. Nem saberia como descrever a dor ardente que senti.
Mais lágrimas vieram. Mais movimentos do metal na carne. Mais líquido sem cor descendo goela abaixo. Os últimos comprimidos. Mais uns goles, mais uns cortes, a garrafa secou.
— Victor. — alguém me chamou. Ou pensei ter ouvido chamar. Meu corpo descansava sobre os lençóis macios, não me lembrava de ter deitado. Tudo parecia girar lentamente, como uma roda gigante parando, só que não parava. Aumentava.
E tinha as vozes na minha cabeça, a voz melodiosa nos fones e a voz distante que parecia estar chamando meu nome.
Meus olhos estavam pesados. Minha carne ardia, latejava. Eu estava sorrindo, chorando, estava com medo. Eu estava com medo. Foi assustador constatar isso. Eu estava com medo. De que? Na hora não sabia dizer.
Ouvi um barulho. Uma porta se abrindo. Luz me atingiu.
— Vict...VICTOR!
Um par de olhos me encaravam. Olhos assustados, mais que isso, apavorados! Ouvi um grito soar mais alto que a introdução de uma canção dos The Smiths que começava nos meus fones. Um grito, choro— não meu—  olhei nos olhos dela antes de fechar os meus e gradativamente e de repente tudo se tornou silêncio e escuridão.

BREATHING [ SetembroAmarelo ]Onde histórias criam vida. Descubra agora