Veneno das Palavras

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O silêncio novamente me engolia.

Ar frio entrava pelas frestas das duas janelas do teto, o cheiro de mofo sucumbia às paredes de um mármore cor ébano. Apesar do tempo naquela profunda escuridão, meus olhos nunca se acostumavam com a protuberante pretidão, e sempre ardiam com as lágrimas que rolavam por minha face. Não sabia dizer se o bolo na minha garganta era pela dor de reprimir tantos soluços ou se era por aquele mal estar que insistia em ficar voltando a cada hora que passava.

E quantas horas...

Um sorriso se alargou por meus lábios notando, que apesar de tudo, a ironia me acompanharia até o túmulo. E exatamente por causa dela eu estava aqui, trancado em uma das torres da Mansão Welle.

Castigado porque respondi mal o Lord Osanos, era muita falta de senso até pra mim.

Infelizmente, eu não era conhecido pelo meu bom senso, minha língua era afiada como a de uma víbora e destilava veneno como uma arma, sempre carregada e pra minha melancolia, minhas respostas saíam facilmente, minha língua era um gatilho fácil de ser provocado.

Palavras podem ser piores que uma faca – dissera meu avô, sorrindo por entre os dentes velhos e gastos pelo tempo. – Deve-se tomar cuidado quando recitá-las meu neto, não ferem fisicamente, mas ferem a alma de um jeito que nem um sábio pode explicar.

Outro sorriso, eu estava delirando, claro. Meu avô não estava comigo trancado na imundice que era aquele cômodo, sequer estava vivo. Meramente podia recordar dele, já que ele se fora já por muito tempo, mas tinha coisas que nunca sumiriam de minhas memórias. Suas palavras apenas repousavam na imensidão que era minha mente, uma mente tão suja quanto um esgoto de um vilarejo vermelho. Apenas a dúvida se eu deveria melhorar meus hábitos tornava eu racional, se não, seria apenas mais um animal no meio de um imenso zoológico de aberrações que era o mundo a qual eu vivia.

Prateado, nobre, filho de uma família ilustre e poderosa. Era dessa maneira que eu era definido, mas eu me perguntava. Eu era assim tão nobre? Sou assim? Qual é o meu objetivo nessa Terra? Casar? Ter filhos? Ir pra guerra como muitos de meus primos e primas? Não, aquele não era meu destino, não era isso o mundo pretendia para mim. Sendo descendente do Chefe da Casa Welle, eu não pararia em uma vala, na guerra, muito menos seria enviado para uma batalha a qual resultaria em minha morte. Eu era precioso demais para eles, e isso era o que mais me machucava.

Precioso, uma besteira! Se eu fosse precioso não estaria trancado no sótão!

Rastejei pelo chão maculado por anos de sujeira, a poeira grudenta e bolorenta se acumulava em minhas vestes como uma praga se instala numa plantação, aquilo me caracterizou com o ambiente.

Ótimo, agora posso virar mais um móvel daqui e quem sabe ter uma vida em paz!

Minhas mãos deslizaram por uma poltrona já gasta, o tecido não era nada macio e até machucava meus dedos frágeis e esguios. Empurrei meu corpo para cima e deitei naquele emaranhado de cores gastas rezando para que chegasse logo o horário da minha saída.

Eles não me deixariam aqui pra sempre, deixariam?

As indagações circundavam minha mente como um lobo analisa sua presa, pronto para dar o bote. E cada questão era uma apunhalada em minhas costas.

Menino tolo, se fossem te abandonar você já estaria morto. Fraco! Não sabe nem caminhar em uma floresta sem se perder. Acha mesmo que vai sobreviver em um mundo como esse?

Eu tinha o péssimo hábito de me torturar, a voz em minha mente tanto me ajudava, quanto me machucava. Soco a poltrona com a destra, sentindo meu punho afundar entre as entranhas de algodão e espuma, minha mão fechou-se em torno de algo frio e metálico.

A chave!

Então veio a indecisão. Se saísse, seria capaz de minha mãe me pendurar em uma das estacas dos imponentes portões que circundavam a casa, se eu ficasse, seria capaz de eu ficar um bom tempo aqui. Em ambos os casos eu continuaria de castigo, valia apena só pra repousar mais algumas horas sobre o Sol que restava?

Tudo por culpa daquele nariz empinado, se aquele ninfoide intrometido não soubesse tomar conta da própria vida eu não estaria aqui!

A lembrança veio em tona, desenhando-se diante de meus olhos como sempre acontecia quando relembrava de algo. Minha memória não falhava, nunca.

O céu estava nublado com o acumulo de nuvens que insistiam em querer se sobressair sobre o Sol. Meus pés balançavam inquietos entre o espaço do chão e a cadeira. Um costume besta que tinha desde a infância; já tinha me rendido bons puxões de orelha da senhora Blonos. Mas naquele dia não tinha problema, ninguém iria se meter debaixo da mesa só para ver se um garoto de dezesseis anos estaria balançando ou não os pés.

Era dia de comemoração, mais um dos longos e entediantes feriados do nosso povo. A comemoração era pelo dia que Norta foi inaugurada, imponente entre todos os países, tão poderosa e destruidora quanto um míssil. Claro que pra mim aquilo não significava nada, mas comparecer em eventos como esse era obrigação de quem participava da corte.

Meus dedos tamborilavam pela fria madeira da mesa coberta apenas por uma fina camada de seda com entalhes de explosões coloridas que faziam qualquer poeta ou artista chorar. Na minha frente não podia estar pessoa mais chata, Lord Osanos se deleitava com um copo de vinho fazendo tantas perguntas pra minha mãe sobre meu pai que as palavras simplesmente explodiram em minha boca.

– Qual seria o motivo da ausência de seu marido, Lady Nornus? – Indagava o ninfoide com todo o prazer de ver a dor nos olhos de minha mãe. A raiva se estampava em meus olhos e fui obrigado a cerrar os punhos para não envolvê-los no pescoço enrugado daquela aberração.

Rapidamente me virei para minha mãe, esperando uma resposta à altura. A resposta não veio, o silêncio foi à resposta de minha mãe, não suportei ver outro sorriso de satisfação no rosto de Osanos.

– Tome conta da sua vida! Por que você não vai enfiar a cabeça em uma fonte e não se afoga logo? Ninguém suporta você. – As palavras soaram doces em minha boca, alegres por escaparem por entre meus dentes cerrados.

Toda corte se virou para mim, em um silêncio tão materialista que eu poderia pegar uma faca e cortá-lo feito manteiga, o tilintar dos garfos contra os pratos de porcelana cessarão como um abafado suspiro, cada vez mais baixo. Minha mãe me tirou de lá aos puxões de orelha se desculpando pela minha falta de educação, queria esbravejar contra ela, gritar aos quatros ventos que aquilo não estava certo e que ela não podia permitir que um Lord qualquer a ofendesse com aquelas perguntas, mas as palavras morriam na minha garganta antes mesmo de saírem, fiquei quieto como um pássaro na gaiola, privado da liberdade e condenado ao silêncio por toda eternidade.

Minha mãe me guiou até um lugar reservado, longe de qualquer pessoa ou poder que pudesse nos alcançar. Olhei fixamente nos olhos azuis intensos dela, tristes como sempre e aquilo me deixava mais despeitado do que tapas na cara ou qualquer bronca que ela pudesse me dar.

Você a magoa, Luke. Magoa por ser egoísta, já pensou pelo que ela já passou nessa corte. Não precisa de uma criança para defendê-la.

– Me perdoe mãe. – Comecei, já cerrando os punhos para não descontar a raiva nas paredes de marfim e diamantes. – Você não deveria...

Fui interrompido quando ela envolveu meu pescoço com um doce abraço. Senti meu corpo ser pressionado contra o seu, senti seu perfume de flores recém-colhidas, senti seu amor por mim por mais que eu a machucasse. Uma lágrima tinha escorrido do meu rosto naquele dia, tão sincera quanto o sorriso de um bebê.

Soltei a chave desistindo da idéia de fuga, seria mais uma das futilidades que eu sabia e magoar minha mãe não era algo agradável nem mesmo pra mim. Não, eu não era digno de liberdade pelo simples motivo de não saber usá-la. Minha maldição era ter nascido prateado, com poderes inimagináveis. Tão poderoso quanto uma espada, eu era o veneno que iria sucumbir essa família, lento, mas destrutivo. 

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