[P1] Emily

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TEMPO PRESENTE — DIA 1.384 APÓS O MASSACRE

Tão logo acordo com o sol no rosto, deslizo o giz verticalmente na parede da minha cela. Faço isso rápida e agilmente, como fiz ao longo desses três anos. Um traço curto no canto esquerdo e termino: este é o último. Mais precisamente este é o milésimo trecentésimo trigésimo quarto. Um número grande, eu sei. Poucos contariam os dias até aqui ordinalmente. Ainda menos somariam sem se perder, mas é mais fácil do que parece – eu lhe asseguro. Repita comigo: milésimo trecentésimo trigésimo quarto.

Não é difícil se você partir do início.

Numa manhã você acorda e traça um risco na parede. Você o chama de primeiro.

Ao despertar na manhã seguinte, você faz outro e diz para si mesmo: segundo.

Então, chama o próximo rabisco de terceiro e o seguinte de quarto. Por fim, repita esse processo 1.334 vezes. Um número por dia. Mais fácil do que isso? Só matar quatro pessoas de sua própria família a tiros e machadadas chapado com entorpecentes... não lembro ao certo se estava ou não, mas é o que alegam.

Creio que a parte mais legal não seja nem traçar de cela em cela um risco branco todo dia com um giz gasto de lousa. Mil trezentas e trinta e quatro vezes! O fato mais gozado – e quem rir desse vai pro inferno! – é que eu realmente não lembro se matei ou não matei. Enquanto outros da minha idade se perguntam sobre Ser ou não ser?, casar ou namorar?, direito ou engenharia?, o loiro ou o moreno?, eu cá reflito em solidão e morbidez: serei eu uma homicida atroz e sanguinária ou só um bode expiatório?

Francamente, eu acredito nos rumores. Devo ter apunhalado e arrastado um a um dos meus pais e meus irmãos e aguardado as consequências. Mas muitas vezes desconfio...

A certeza real dos fatos? Só eu poderia ter. Mas eu não lembro. De nada.

De absolutamente nada – exceto números ordinais.

A matemática é básica: junte drogas, estresse pós-traumático e transtornos neurológicos numa só pessoa, em doses cavalares de uma vez. Caso ela recorde que seu nome é Emily Simões Ferraz considere isso lucro.

Além do nome, sempre me lembro de contar. E tenho feito isso dia após dia ao longo desses anos. Desde as mortes, cada vez que o sol desce e renasce a leste eu somo um número a um marco que só existe em minha mente. Nunca erro ou perco a conta. Nunca esqueço. Eu traço um risco na parede e conto os dias para algo que não sei bem o que é.

Talvez eu conte por contar. Eu conte só para entender como um segundo dura anos e um dia, uma Era inteira. O tempo dos homens não me diz nada. Anos, meses e semanas. Desse modo, eu poderia dizer que estou presa há três anos, nove meses e doze dias. Mas isso foge da questão principal. Isso mascara a real pergunta atrás de datas e calendários. E a real pergunta é: quanto tempo dura o tempo quando a ti só resta ele?

Para mim, até este Dia da Liberdade foram eternos mil trezentos e trinta e quatro riscos.

Ciranda dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora