14 DE NOVEMBRO DE 2014 — 208 DIAS ANTES
– Me deixe entrar em você – ele pediu-lhe ao pé do ouvido. – Eu serei bom, você vai ver.
Eu tinha apenas cinco anos quando vi isso – e muito mais – escondida atrás duma parede. A testemunha e filha do algoz. A acuada e escondida. A que nunca acreditou em promessas falsas e vazias... eu serei bom, você vai ver. Então, o fogo disse para ele Me deixe entrar em você. Mas permissões não domam chamam. Suas línguas quentes e dançantes que se alastram e então devastam. Me deixe entrar em você, pediu o fogo. Ele negou.
Mas há homens e há chamas que desconhecem o consentimento.
**
Cenas vagas dançam em minha mente e zumbem em meus ouvidos mesmo depois que eu acordo inquieta. Risos, fogo, sangue e morte. São esses meus sonhos habituais desde a morte de meu pai – nada estranho ou assustador. Ao levantar-me com o sol forte no céu claro, noto a luz dourada a pender baixa na varanda e irradiar brilho em meu quarto.
Metal range com metal lá embaixo, e quando olho pela janela vejo que é só tia Dora fechando o portão atrás de si e regressando à mansão suada. Calça legging e blusa branca. Sua testa brilha sob o sol e seus cachos são gotas de ouro cintilantes enquanto suor escorre deles. Dora é beleza, sarcasmo e pioneirismo – é assim que a elogiam.
Dora é frescor, beleza e malícia – eu observo em seu melhor lado –, mas Dora é maldade, cinismo e medo. É a mãe distante que eu nunca tive, mas Emily diz que de mãe, nada possuí. Minha tia acena para mim cordialmente quando passa pela porta. Um olhar dócil e um sorriso. Me surpreende ela ter-me visto. Saio da janela e me dispo para um banho.
São sete em ponto quando eu saio.
Ainda nua e enrolada, pego o celular no criado-mudo. As notificações lembram os compromissos para este dia: escola, trabalho de inglês na casa da Bia, social na casa de "amigos" a partir das 9 – evento este para o qual eu não vou. Não fui convidada.
Você deve se perguntar por quais motivos minha agenda mostra compromissos que não são meus. É uma Síndrome. Não real com tratamentos ou remédios. Mas é assim que a Emily e os amigos zoam – Síndrome da Coadjuvante Dispensável.
Eu sou a coadjuvante dispensável. A que está sempre a esgueira. A inútil e descartável. A que só vive a vida alheia. A que não faria falta. A que ninguém sabe que existe.
O sol sobe no horizonte e um raio oblíquo transpassa a janela e atinge meu rosto. A data brilha forte no visor iluminado e reflete a claridade. É um dia de novembro de uma longa primavera – nenhuma luz me permite esquecer.
É 14 de novembro. E algo me diz que será um longo dia.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ciranda dos Mortos
Mystery / ThrillerAs primas Lívia e Emily Ferraz foram as únicas sobreviventes de um massacre. No "Domingo Sangrento de Elinópolis", os pais e os dois irmãos de Emily foram brutalmente assassinados, sendo a jovem acusada pelo crime. Contudo, abusos de drogas e est...